No dia 20 de fevereiro comemoramos o Dia Nacional de Combate às Drogas e Alcoolismo. Este dia é fundamental, principalmente, para termos uma maior visibilidade sobre a questão do combate à dependência química, que pode ir muito além das questões relacionadas com drogas ilícitas (que ganham maior visibilidade na imprensa no dia a dia).
Sabemos que essa é uma questão de saúde pública e, portanto, merece bastante atenção para que seja possível ao dependente ter os melhores tratamentos em busca de melhor qualidade de vida.
Então, aproveitando esta data importante para a conscientização da população sobre vício em drogas, medicamentos, álcool e cigarro, vamos apresentar agora evidências científicas do uso de Cannabis Medicinal para o tratamento de vício.
Os riscos da dependência química
Comecemos, em primeiro lugar, entendendo o que significa, de fato, a dependência química. A OMS diz que trata-se de um “estado psíquico e, algumas vezes físico, resultante da interação entre um organismo vivo e uma substância, caracterizado por modificações de comportamento e outras reações que sempre incluem o impulso a utilizar alguma substância de modo contínuo ou periódico com a finalidade de experimentar seus efeitos psíquicos e, algumas vezes, de evitar o desconforto da privação”.
Já no DSM-5 (Manual de Diagnóstico de Saúde Mental), que classifica o quadro como “Transtornos Relacionados a Substâncias e Transtornos Aditivos” define uma série de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos no uso contínuo pelo indivíduo.
O manual define critérios específicos para caracterizar a dependência para cada uma das substâncias psicoativas. Contudo, também define alguns pontos em comum, entre eles:
- tolerância (ou seja, necessidade de aumentar as concentrações ao longo do tempo para ter o mesmo efeito);
- abstinência (caso a pessoa não faça uso da substância, ela passa a ter sinais e sintomas físicos e comportamentais da ausência);
- consumo que dure um período de tempo maior do que o planejado inicialmente;
- incapacidade de controle de consumo;
- pessoa não se importa de gastar muito tempo em busca da substância;
- prejuízo do círculo social devido ao uso da substância;
- persistência do uso, mesmo que a pessoa sinta os prejuízos clínicos em seu uso (por exemplo, continuar o consumo de álcool mesmo com evidências de danos no fígado).
Ou seja, para caracterizar dependência química, temos uma situação de substâncias que possam alterar, em alguma medida, o estado de consciência do usuário e que gerem consequências que atrapalhem a vida pessoal, profissional e física da pessoa, bem como sua saúde física e mental.
Os riscos que uma pessoa com dependência química se expõe são diversos e podem afetar várias áreas da vida dela, como também causar problemas para familiares e amigos que convivem com ela.
Alguns dos principais pontos que podemos encontrar são:
- isolamento de família e amigos;
- dívidas financeiras causadas pelo consumo descontrolado das substâncias (álcool, drogas ilícitas e medicações);
- maior incidência de câncer, dependendo da substância que causa o vício (por exemplo, o alcoolismo eleva os riscos de câncer de fígado. Já o tabagismo eleva os riscos de câncer de boca e pulmão);
- lesões cognitivas irreversíveis;
- desencadeamento de transtornos mentais (depressão, síndrome do pânico e esquizofrenia);
- distorção de visão da realidade;
- realização de comportamentos de risco;
- elevação do risco de morte.
Tratamento para dependência química
A dependência química é multifatorial e, portanto, o seu tratamento precisa abranger diversos pontos para que esse sistema que alimenta o vício possa ser devidamente tratado e, assim, gerar melhores benefícios.
Vejamos os principais pontos utilizados para dependência química a seguir.
Desintoxicação
Um dos primeiros passos é, justamente, passar pelo processo de desintoxicação. Trata-se de um dos pontos mais delicados, justamente, porque é nesse momento em que as crises de abstinência começam a acontecer e tende a ser o momento no qual muitos pacientes desistem.
Ele precisa de acompanhamento médico durante um determinado período de tempo para ser realizado.
Tratamento medicamentoso
Muitas medicações podem ser utilizadas, caso a caso, para o tratamento da dependência química e, assim, ajudar a evitar que a pessoa possa retornar ao uso das substâncias que geraram o vício.
Contudo, é importante que a avaliação aconteça caso a caso.
Para isso, é importante realizar uma avaliação da saúde da pessoa no momento em que começa o tratamento para o vício.
Cada substância tende a ter uma melhor medicação que dê suporte para passar pelo processo de desintoxicação para amenizar os sintomas da abstinência e eventuais questões que potencializem o vício.
Por exemplo, no caso da heroína, são escolhidas medicações que atuam nos sistemas de recompensa e prazer, visando seu reequilíbrio, algo que passou por problemas durante o período de vício.
Assim, reduz-se as chances de que a pessoa sinta desejo de retornar a utilizar a droga ilícita.
Tratamento psicoterápico
Como falamos, o tratamento de vício, seja ele sobre drogas, medicamentos, álcool ou cigarro é multifatorial e leva, também, muitas questões comportamentais e psicológicas em conta. Por isso, para que o tratamento seja eficiente, é preciso, sim, o acompanhamento psicoterápico.
Voltemos, por exemplo, a situação da elevação do consumo de álcool, cigarro e medicamentos ansiolíticos durante a pandemia. A razão para essa elevação é de cunho comportamental e de saúde mental.
Afinal, muitas vezes as substâncias são utilizadas justamente para promover uma sensação de relaxamento em um contexto no qual há um receio pela sua saúde e de demais pessoas, além de ser um período de grandes incertezas.
O tratamento medicamentoso, para amenizar a questão do vício, precisa do complemento do tratamento dessas questões. Por meio da terapia é possível cuidar de eventuais medos e ansiedades e, assim, oferecer suporte e ferramenta para que a pessoa possa lidar com isso sem precisar, necessariamente, utilizar substâncias que alterem estado de consciência para este fim e que possam vir a continuar a situação de dependência química.
Há diversas abordagens psicoterapêuticas que são bastante eficientes para os tratamentos de vício, estando entre as principais delas:
- psicanálise;
- terapia cognitivo-comportamental;
- terapia em grupo;
- terapia ocupacional.
Mudança ambiental
É importante considerar, também, que a pessoa com adicção precisa ter uma mudança considerável de ambiente para evitar que eventuais contatos com a substância possam colocar tudo a perder. Afinal, mesmo com todos os tratamentos, o risco de uma recaída existe.
Por exemplo, na residência de uma pessoa com vício em álcool deve-se evitar ao máximo que tenha bebidas alcoólicas no espaço, pois pode gerar o desejo no consumo.
Por isso a mudança ambiental precisa passar pelo suporte de todos os envolvidos, caso a pessoa não more sozinha.
Apoio familiar e de amigos
Esse é um ponto muito importante: o apoio familiar e de amigos é fundamental para que a pessoa realizando tratamento de vício possa sentir-se mais segura.
É muito comum que a parte emocional fique fragilizada e a pessoa sinta-se vulnerável. Esse tipo de sentimento pode, justamente, potencializar os riscos de recaída.
Além disso, em conjunto com a terapia, o afeto das pessoas em volta ajuda para mudanças comportamentais importantes que auxiliam no fortalecimento da saúde mental. E sabemos que há um comportamento de isolamento da pessoa com vício.
Por isso, reestabelecer os laços com quem esteja tentando mudar a situação é fundamental para ajudá-la a sair dessa condição.
O uso de Canabinoides no tratamento de vícios
Ainda que não seja muito comum no Brasil, os canabinoides podem ser grandes aliados no tratamento de vícios, principalmente, como uma terapia coadjuvante. Os benefícios ocorrem, principalmente, porque eles auxiliam no reequilíbrio do sistema endocanabinoide, um grande regulador do nosso organismo.
Se você não sabia, todos os mamíferos, incluindo os seres humanos, possuem receptores canabinoides no organismo. Eles auxiliam a equilibrar neurotransmissores importantes que interferem em nosso corpo e nossas emoções, como a citicolina, adrenalina e noradrenalina.
Por isso, esse sistema pode ser um aliado importante nessas situações. Esse reequilíbrio pode ser importante para minimizar o desejo pela substância causadora do vício e prevenir recaídas.
Além disso, nos períodos iniciais do tratamento, é possível utilizar a Cannabis Medicinal como um substituto para as substâncias que proporcionam vício e, assim, gerar menos impacto no organismo na retirada de químicos que causam dependência.
Por exemplo, sabemos que as medicações ansiolíticas podem causar dependência química quando há abuso no seu uso. Contudo, a retirada pode causar, justamente, um efeito de abstinência muito forte, em conjunto com a retomada de processos ansiosos.
Ao utilizar canabinoides que possuem efeito ansiolítico, pode auxiliar a não gerar desconfortos e, assim, ter uma maior eficácia no tratamento para desintoxicação, sem causar prejuízos e gerar maior qualidade de vida e bem-estar neste momento tão delicado.
Cannabis para vício em medicamentos
Muitos medicamentos possuem efeitos viciantes a longo prazo, quando não há o controle adequado. Estão neste rol, especialmente, os opioides. Muito utilizados, principalmente, para tratamentos de dores crônicas, eles tendem a levar a esse efeito, entre outras razões, por promoverem tolerância no organismo.
Ou seja, para obter maior alívio, é preciso aumentar a dose e, com isso, gerando uma relação de dependência. E a Cannabis Medicinal pode auxiliar a minimizar os efeitos dessa dependência.
Um dos relatos interessantes sobre essa relação está no livro “Free Refils: a doctor confronts his addiction” (em português: “Refis grátis: um médico confronta seu vício”). Nele o profissional de saúde Dr. Grinspoon conta como encontrou-se em uma situação de dependência por opioides e como os canabinoides auxiliaram nesse processo, como uma terapia coadjuvante. A partir disso, ele tornou-se um especialista em abordagem da Cannabis nos Estados Unidos.
Cannabis para vício em drogas
O canabidiol (CBD) possui um bom efeito para tratamento de vício em drogas ilícitas. Temos, por exemplo, a experiência do médico Gilberto Kocerginsky, no Rio de Janeiro, que utiliza esse canabinoide para o tratamento de dependência em cocaína. A história dele já foi contada aqui no Cannabis & Saúde.
O CBD promove o equilíbrio do sistema endocanabinoide, auxiliando para que ocorra uma menor procura para obter a sensação de euforia que essa droga provoca, permitindo uma maior regulamentação dos neurotransmissores como dopamina.
Além disso, segundo o profissional, auxilia na homeostase do corpo (humor, pressão arterial, regulação do sono), o que pode ser importante para lidar com a abstinência de uma forma mais tranquila, com menores efeitos colaterais.
Cannabis para vício em álcool
Segundo estudo feito por um grupo de quatro psicólogos e neurocientistas, com 120 voluntários, analisou os resultados de tratamento utilizando combinações que tivessem predominância de THC ou CBD e aqueles que tenham concentrações semelhantes dos dois canabinoides.
O resultado foi que o uso de CBD permitiu reduzir o consumo de álcool. Já as outras combinações não tiveram o mesmo resultado.
Cannabis para vício em cigarro
Um estudo publicado na revista Addiction mostra, também, que o CDB pode auxiliar a diminuir o hábito de fumar e, inclusive, auxilia o paciente a largar o cigarro. Segundo a pesquisadora responsável, Chandni Hindocha, isso ocorre devido a essa ação sobre o sistema endocanabinoide.
A pesquisa foi realizada com 30 fumantes em condição de dependência química. Eles utilizaram 800 miligramas de canabidiol.
O composto promovei a regulação do sistema endocanabinoide, auxiliando no controle do estresse e modulação de recompensa. Quem fez o tratamento com CBD teve menos problemas com abstinência.
Por que a Cannabis de uso medicinal não causa vício
Temos uma pergunta que sempre é realizada quando falamos sobe uso de Cannabis medicinal para tratamento de vício: mas afinal, ela não causaria vício? A resposta é: não.
O motivo é que são selecionados os canabinoides que não proporcionam dependência, nem serem psicoativos. Além disso, os que listamos possuem ação ansiolítica, algo importante para minimizar efeitos de abstinência e situações que conduzam ao vício (por exemplo, busca de psicoativos ou substâncias relaxantes que cause dependência para minimizar efeitos de ansiedade e estresse).
Assim, são isolados os canabinoides que contribuem de forma positiva para o tratamento do vício, não sendo utilizadas as substâncias encontradas na planta que estão ligadas à dependência.
Evidências clínicas sobre o uso de Cannabis de dependência química
Mas afinal, as pesquisas científicas seguem apontando, de fato, esses benefícios? Sim. E para mostrar isso, vamos apontar as principais evidências clínicas sobre o uso de Cannabis para o tratamento de dependência química.
Um estudo publicado na revista Addiction aponta que o uso de Cannabis no tratamento de abuso de álcool permitiu uma redução significativa de dias de abstinência de álcool em comparação com aqueles que passaram por este período sem o tratamento com Cannabis medicinal.
Ainda sobre alcoolismo, temos uma pesquisa publicada na Addictiion Biology que aponta como o CBD auxilia na redução do consumo de álcool e melhora a motivação do paciente, tendo resultados mais positivos do que os medicamentos tradicionais utilizados para este tipo de transtorno.
Temos, também, um outro estudo realizado pelo laboratório da University College de Londres, que apontou uma redução de 40% nos cigarros fumados pelos participantes da pesquisa. Isso complementa a pesquisa que listamos anteriormente neste artigo no uso da Cannabis para o tabagismo.
No campo das medicações que são utilizadas como drogas recreativas, temos uma pesquisa realizada com camundongos que aponta como o CBD auxilia a reduzir a recaída em casos de tratamento de dependência química por metanfetamina, mesmo em eventuais condições de estresse.
Sobre drogas ilícitas, uma pesquisa aponta que o CBD auxilia na regulação do sistema endocanabinoide em camundongos, auxiliando a reduzir o desejo pela ingestão de cocaína nos animais reduzindo sua ansiedade.
Ou seja, já há vasta literatura científica que mostra a eficácia dos canabinoides no controle da dependência química.
Como iniciar um tratamento com Cannabis?
Diante de todos os benefícios que listamos ao longo deste guia completo, podemos ver como os canabinoides podem ser aliados no tratamento dos mais diferentes tipos de vício, sejam eles por drogas ilícitas, medicamentos, álcool ou cigarro.
E com o benefício de que o uso dos canabinoides mais adequados permite que o tratamento seja feito sem utilizar substâncias que podem gerar novas dependências
Por isso, a Cannabis medicinal pode ser uma aliada importante no tratamento do vício. Isso é importante, principalmente, para pacientes que já apresentem algum tipo de debilitação no organismo e precisem utilizar medicações que gerem menos efeitos colaterais, garantindo uma recuperação sistêmica mais tranquila.
Assim, a Cannabis medicinal pode ser uma aliada importante, sendo um tratamento coadjuvante interessante pelo seu custo-benefício.
Mas como obter a prescrição para o uso de Cannabis medicinal para o tratamento de vício químico? Para isso, é importante passar por uma avaliação com um profissional com experiência na prescrição de canabinoides
Nesse processo, todos os exames serão realizados para avaliar o atual estado de saúde da pessoa, bem como o médico se informará sobre quais procedimentos estão sendo feitos neste momento, para evitar que ocorra algum tipo de interferência no tratamento.
Além disso, será possível analisar quais são as doses que devem ser realizadas para que seja possível gerar um tratamento mais eficiente e, também, o profissional de saúde acompanhará todo o processo. Assim, caso o tratamento ainda não tenha alcançado o ponto esperado, as doses poderão ser adequadas caso a caso.
Assim, o passo a passo para o uso da Cannabis no tratamento em vício em drogas, medicamentos, álcool e cigarro são:
- pesquise quais são os médicos prescritores e agende a sua avaliação (LISTA DE MÉDICOS);
- passe pela avaliação, na qual serão solicitados todos os exames necessários para identificar o atual estado de saúde, bem como uma anamnese completa. Com isso, é possível analisar não só o estado físico do paciente, mas também de saúde mental. Afinal, como vimos, esse é um ponto fundamental para o tratamento da dependência química;
- o profissional pode fazer um encaminhamento para um tratamento multidisciplinar envolvendo psicólogos, psiquiatras, entre outros, para auxiliar em um tratamento mais eficiente;
- o médico prescritor também poderá tirar todas as suas dúvidas sobre a obtenção da medicação junto à Anvisa, no que diz respeito às documentações que precisam ser apresentadas aos órgãos competentes para ter o direito a acesso a medicação (dependendo de qual será prescrita);
- faça o acompanhamento constante e participe dos retornos. Isso será fundamental, principalmente, para adequação de doses e acompanhamento do caso.
O tratamento de vício em drogas, medicamentos, álcool e cigarro é delicado e exige cuidados em diversas esferas. O objetivo é sempre priorizar a saúde e bem-estar do paciente dependente químico e isso passa por muitas questões, entre elas, minimizar impactos de crises de abstinência, retomar o convívio social e ter a confiança de amigos e familiares.
Por isso, a Cannabis medicinal pode ser uma aliada importante. A partir dela, o paciente pode se recuperar mais rapidamente nos aspectos físicos e, até mesmo, reduzir sintomas que estão ligados com saúde mental (como ansiedade, depressão, pânico, entre outros) que levaram a pessoa a busca de substâncias que causaram a dependência química.