Como todos sabem, venho trabalhando com a síndrome de Tourette (ST) há quase 30 anos. Para a Tourette refratária aos tratamentos tradicionais, tínhamos um último recurso, a cirurgia de estimulação cerebral profunda, na qual se coloca um eletrodo nos gânglios da base do cérebro para controle do movimento, assim como se faz na doença de Parkinson. Eu já acompanhava as pesquisas sobre a Cannabis na síndrome de Tourette que são feitas na Alemanha e sabia desse potencial terapêutico. Mas somente em 2015, quando a Anvisa regulamentou a importação dos produtos à base de Cannabis, pude constatar seu efeito na prática clínica.
A Cannabis possui mais de 100 fitocanabinoides, sendo o THC e o CBD os mais elucidados. Há outros com propriedades terapêuticas sendo estudados, como o canabigerol (CBG) e o canabinol (CBN).
Canabidiol isolado não funciona
Um fato importante no caso da síndrome de Tourette e em outros transtornos do movimento é que o canabidiol isolado não funciona. Para essas e várias outras patologias, a presença do THC é fundamental. Inclusive na sua forma ácida, o THCA, que possui atividade anti-inflamatória e anticonvulsivante. Muitos casos de epilepsia refratária que não respondem ao canabidiol, respondem quando se dá um extrato rico nas formas ácidas.
Esse conhecimento é mais profundo, decorre mais da prática clínica dos grupos que trabalham com e pesquisam a “medicina canabinoide”, ou seja, ainda não há nada publicado nesse sentido na literatura científica.
No caso da síndrome de Tourette, a partir dos relatos de pacientes que usavam a Cannabis fumada e obtinham resultados positivos, foi que a pesquisa do THC na ST teve início. A maioria dos estudos foi feita com o dronabinol, um THC sintético, não disponível no Brasil.
Os produtos importados e denominados full spectrum, ou seja, extratos integrais do cânhamo (Cannabis com até 0,3% de THC) possuem quantidade tão pequena desse composto que, muitas vezes, não é suficiente para atender às necessidades dos pacientes. Assim, frequentemente torna-se necessário acrescentar THC de outra fonte ao produto full spectrum.
A Abrace Esperança, associação que já conta com mais de 14 mil associados, cumpria essa função até setembro de 2020, quando começamos a ter à disposição produtos importados com alto teor de THC. Temos agora a possibilidade de importar produtos com THC isolado, CBD isolado, CBD e THC na proporção 1:1, ampliando enormemente as possibilidades terapêuticas.
Pois bem, toda esta introdução foi para divulgar que esta semana tive a felicidade de ver os resultados de tratamento do primeiro paciente com ST grave para o qual prescrevi o THC importado em conjunto com um extrato de cânhamo integral. Os resultados foram excelentes, com redução de 80% dos tiques, com CBD:THC numa proporção 13:1, sem efeitos colaterais.
Infelizmente, o produto é caro e o único no mercado até agora. É necessário que outras empresas consigam trazer produtos medicinais com alto teor de THC ao mercado brasileiro e que os preços reduzam. O ideal seria o cultivo no Brasil, o que possivelmente reduziria os custos e movimentaria a economia brasileira.
No momento, somente a Abrace esperança e a Cultive possuem o direito de cultivar, extrair e fornecer o extrato a seus associados. Várias associações buscam o mesmo direito na Justiça, e aguardamos ansiosamente para que esse dia chegue, e assim, democratize-se o acesso a este tipo de tratamento.