A advogada Mª José Delgado convida o filho, o tambem advogado Rodrigo Fagundes, para debater a polêmica das flores de cannabis à luz do Direito.
O que fazer quando dois institutos do Direito, que gozam de grande valoração, entram em colisão? Do mesmo modo, como o sistema normativo deve apresentar, de alguma forma, a resolução dos conflitos, para que prevaleça a melhor alternativa no caso concreto? Refiro-me aos embates, cada vez mais corriqueiros, entre o Direito Fundamental à Saúde, previsto na Lei 8080/1990, e a Lei nº 11.343/2006, conhecida popularmente como “Lei de Drogas”.
O que fazer quando dois institutos do Direito, que gozam de grande valoração, entram em colisão?
Antes de tudo, há 75 anos, a Saúde consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por sua vez, no contexto brasileiro, o direito à Saúde foi uma conquista do movimento da Reforma Sanitária. De fato, há 35 anos, tivemos a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Constituição Federal de 1988. Seu artigo 196 dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido, mediante políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços, para a promoção, proteção e recuperação”.
Diante desse cenário, o Dr. Gonzalo Vecina Neto define, de forma ampliada, Saúde Pública, como um “bem público” e, como tal, independentemente de quem a presta, como serviço. O Estado, portanto, deve ser responsável por garanti-la. De forma semelhante, este raciocínio pode ser aplicado à questão sobre o controle sanitário de produtos de Cannabis para uso medicinal, o que já é uma realidade.
Deve-se considerar também algumas transformações vividas, que impactam a organização do Sistema de Saúde
Primeiro, a mudança demográfica que vivemos, com o flagrante envelhecimento da população. E até o momento não temos uma política pública capaz de organizar o futuro. Segundo, a epidemiológica, com doenças crônicas cada vez mais se destacando dentre os indicadores de morbi-mortalidade. Terceiro, a ampliação do acesso à informação, que nem sempre é verdadeira. Por fim, a Cannabis é considerada uma nova “tecnologia”. Como tal, enfrenta questões como o alto custo, a judicialização e, o mais cruel, o preconceito social contra seus adeptos. Essas transformações, no tocante às questões iniciais que se apresentou, na maioria das vezes, resultam na violação do Direito Fundamental à Saúde do paciente. Ele tem dificuldades de acesso à Cannabis, barrado simbolicamente em discussões políticas, e de maneira jurídica e legal, por decisões legislativas, regulatórias e nas Decisões de Repercussão Geral.
Tal como ensina Ferraz Júnior, a ciência do Direito é eminentemente pragmática e orientada a decisões práticas. Assim sendo, é imprescindível que ela mantenha, sempre, estreito contato com a realidade social. Nesse sentido, a norma se apresenta como um instrumento, que visa padronizar a conduta daqueles que a ela estão subordinados, conclui o autor. Para que não reste dúvidas, a norma é um fenômeno jurídico, como um dever de conduta. Ela se traduz em um conjunto de proibições, obrigações, permissões, por meio do qual os homens criam entre si relações de subordinação e coordenação. Isso organiza seu comportamento, coletivamente, sendo eles capazes de interpretarem suas próprias prescrições e de delimitarem o exercício de poder.
Polêmica
Então, voltamos para a Cannabis Medicinal, particularmente, para o tema da atual polêmica sobre a proibição da importação para uso individual (RDC 660/2019) de flores da planta. Nesse ponto, temos claramente, ao menos, um conflito legal, bioético e administrativo. De um lado, os direitos e garantias fundamentais, como o do acesso à saúde e à dignidade humana, asseguradas pela Carta Magna do país e demais marcos legais. De outro lado, a norma jurídica, no caso em tela, a Lei nº 11.343/2006, conhecida popularmente como “Lei de Drogas”, que traz como regra a proibição da produção, do comércio e consumo de substâncias entorpecentes.
Em relação ao uso medicinal da Cannabis, não há de se deixar de fora da discussão os resultados positivos alcançados com o seu uso (e o polêmico uso das flores), em tratamentos de diversas doenças. Em protocolos já empregados por profissionais habilitados a prescrever a Cannabis, há relatos de pacientes, que demonstraram excelentes resultados terapêuticos. Sobre as disposições da Lei nº 11.343/2006, salienta-se que esta também dispõe de um bem jurídico a ser tutelado: a Saúde Pública. Além disso, uma vez que não se contesta a previsão legal, constante no parágrafo único do artigo 2º do referido diploma legal, define-se como regra a liberação da Cannabis para uso medicinal e pesquisa. Nestes casos, as condições de aceitação e o controle da produção devem ser regulados e normatizados pelo Ministério da Saúde e a ANVISA.
O Direito e a proibição de importação de flores
No caso das flores de Cannabis, o Estado, representado pela ANVISA, conforme Nota emitida, proíbe o seu uso, diante da ausência de estudos científicos suficientes, que comprovem a sua segurança. Com isso, a ANVISA faz uso da sua competência legal de proteger a saúde da população e, portanto, regular e emitir atos normativos de maneira eficiente e com base nos Tratados Internacionais sobre controle de drogas, dos quais o Brasil é signatário. Nesse sentido, segue de maneira rígida as Leis 11.343/2006 e 9782/1999, cumprindo seu dever constitucional de redução do risco à saúde da população. Nesse diapasão, caso se constate o crime sanitário, quem contribuiu ou para ele deu causa deverá responder em processo administrativo sanitário. Após conclusão das ações fiscais adotadas, com a caracterização da infração sanitária e ao final do andamento processual, o réu pode ser apenado. Inclusive, a multa vai até R$ 1.500,00, conforme a Lei 6437/77.
No campo do Direito Penal, a contravenção pela prática de numerosas condutas pode caracterizar tráfico de drogas. No caput do art. 33 da Lei 11.343/06 são tipificadas as condutas relativas às drogas propriamente ditas, ao passo que no § 1º há condutas equiparadas, tais como: importar, exportar, remeter, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, fornecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo ou guardar, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas. Tais condutas recebem a mesma pena de reclusão: de cinco a quinze anos.
Em busca do equilíbrio
Assim, há que se buscar um equilíbrio entre os casos de desvirtuamento da política de acesso aos produtos de Cannabis e aqueles que realmente cumprem os requisitos da referida política. Além disso, necessariamente, é preciso buscar coibir a conduta daqueles que descumprem a Lei. O caminho para isso é a rígida fiscalização e, em caso de comprovado desvirtuamento, a aplicação dos rigores da Lei. Além disso, é fundamental garantir sempre o devido processo legal. Por fim, adverte-se que nem mesmo as garantias fundamentais gozam de precedência absoluta. Por isso, a regra jurídica tem que prevalecer, pois somente esta anda suficientemente próxima às decisões tomadas em um Estado Democrático de Direito.
O Portal Cannabis & Saúde conta com colunistas especializados, que produzem um conteúdo sério e com rigor científico em relação à Cannabis. Todas as colunas e informações apresentadas nelas são responsabilidade dos próprios colunistas. Da mesma forma, a propriedade intelectual dos textos é de seus autores.
Se você tem interesse em usar a cannabis com fins terapêuticos, acesse nosso Portal de Agendamento. Lá, você pode escolher o profissional de saúde que melhor atende a suas necessidades. São mais de 250 médicos e dentistas, com experiência em prescrever medicamentos à base da planta. Marque aqui sua consulta!