De acordo com especialistas, a Resolução do CFM fere a Constituição, o Código de Ética Médica e traz insegurança jurídica para o paciente e o profissional da saúde.
Foi publicado hoje no Diário Oficial da União a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.324/2022 que lista uma série de restrições à prescrição de produtos à base de Cannabis por médicos brasileiros. O texto aprovado pela Sessão Plenária do CFM, no dia 11 de outubro, limita a prescrição de canabidiol (CBD) – uma das moléculas presentes na Cannabis – exclusivamente para o tratamento de epilepsias refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa. A nova redação também veda ao médico a prescrição da Cannabis in natura para uso medicinal, assim como quaisquer outros derivados que não o canabidiol, salvo relatados em estudos clínicos autorizados pelo Sistema da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) – órgãos vinculados ao Ministério da Saúde. A Resolução ainda determina que os pacientes submetidos ao tratamento com o CBD, ou seus responsáveis legais, sejam esclarecidos sobre os riscos, benefícios, e assinem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de iniciar a administração do produto.
A redação atual, que revoga a Resolução CFM nº 2.113/2014 (limitava a prescrição do canabidiol a três especialidades: psiquiatria, neurologia e neurocirurgia apenas em casos de epilepsia refratária), agora proíbe os profissionais de Medicina a ministrar palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, assim como censura qualquer divulgação publicitária desse tipo de tratamento. A Resolução do CFM, que tem prazo de três anos para revisão, se ampara no II Princípio Fundamental do Código de Ética Médica para justificar a limitação: “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”, diz o documento. Entretanto, ignora o princípio que trata sobre a autonomia médica e os achados científicos publicados em diversas revistas respeitadas no cenário internacional, na avaliação do neurologista Rubens Wajnsztejn, presidente da Associação Pan-americana de Medicina Canabinoide (APMC). “Acredito que a Resolução do CFM está na contramão do interesse público, do interesse das famílias e dos pacientes que viram na Medicina Canabinoide uma opção eficaz de tratamento e comprovaram, na prática, a sua eficácia. Como professor e pesquisador da Medicina Canabinoide, vemos inúmeros estudos científicos internacionais em que a Medicina Canabinoide está sendo usada com sucesso em diversas patologias”, ressalta Wajnsztejn.
Para o fundador da Rede Reforma, o advogado Emílio Figueiredo, a Resolução nº 2.324/2022 é duplamente inconstitucional. “Na questão jurídica fere a Constituição Federal em dois pontos: primeiro no art. 5º, inciso 13, onde diz que é livre o exercício de qualquer trabalho ou profissão. Essa Resolução (CFM) viola a liberdade profissional do médico. Também viola a Constituição no art. 5º, inciso 14, onde diz que é assegurado a todos o acesso à informação. Quando o texto limita a determinados ambientes classificados como científicos, essa limitação nega o acesso à informação. Fora isso, a Resolução também fere a própria autonomia profissional prevista no Código de Ética Médica. A atividade da Medicina está sendo limitada, violando o que o Código de Ética da Medicina prevê, que é a liberdade do profissional, junto ao paciente e à família do paciente de escolher o tratamento mais adequado para o caso clínico”, alerta Figueiredo.
Emílio se refere ao VIII Princípio Fundamental do exercício da Medicina, contido no Código de Ética Médica, que diz o seguinte: “O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e correção de seu trabalho”.
Questionado se a Resolução pode ser alvo de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal, o advogado afirma que está sendo constituído um comitê jurídico para construção de uma estratégia de atuação no judiciário como forma de garantir aos médicos segurança jurídica na profissão.
O médico pesquisador da Cannabis, Wellington Briques, também critica o posicionamento sem embasamento científico e afirma que não é atribuição do CFM editar regras que normatizam a prescrição médica. “O Conselho Federal de Medicina não tem competência para aprovar ou não medicamento, ou aprovar indicação de medicamento! Isso é da competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Portanto, lamento que um órgão tão importante continue tentando se posicionar dessa maneira, como se tivesse todo o poder de prescrição sobre a classe médica e não se baseia em fatos, em evidências científicas que existem sobre o tratamento com todas as partes da planta para as mais diversas patologias. É uma pena que o Conselho Federal de Medicina ainda esteja se posicionando de uma forma tão retrógada”, lamenta o estudioso.
Para editar a Resolução, o CFM argumenta que toma por base o artigo 7º da Lei nº12.842, de 10 de julho de 2013, que confere ao Conselho Federal de Medicina a competência para editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em medicina no Brasil, autorizando ou vedando sua prática pelos médicos. Por outro lado, o próprio CFM cita Resoluções da Diretoria Colegiada da Anvisa (RDC 327/2019 e a RDC 660/2022) que já autorizam a venda de produtos à base de Cannabis – com canabidiol e tetrahidrocanabinol – nas farmácias e também permitem a importação dos canabinoides, para fins medicinais, desde 2015. Atualmente, 20 formulações com canabinoides já possuem autorização da Anvisa para serem vendidas nas drogarias.
“ Considerando as disposições sanitárias publicadas pela RDC Anvisa nº 327/2019, que facultam aos médicos a prescrição do canabidiol para uso compassivo, segundo as normas para prescrição de produtos do Receituário azul Tipo B ou Receituário amarelo Tipo A, conforme composição percentual de Tetrahidrocanabidiol (THC); considerando as revisões científicas sobre as aplicações terapêuticas e segurança do uso do canabidiol realizada em dezembro de 2020 e em agosto de 2022; considerando a necessidade de controle tanto dos pacientes quanto dos médicos envolvidos com a terapêutica do uso do canabidiol; a Sessão Plenária do Conselho Federal de Medicina realizada em 11 de outubro de 2022, resolve: Art. 1º Autorizar a prescrição do canabidiol (CBD) como terapêutica médica, se indicadas para o tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa”, afirma a resolução.
O texto que busca banir a prescrição do THC pelos médicos ainda se refere à molécula de forma errada. A substância é o tetrahidrocanabinol e não “tetrahidrocanabidiol” como está descrito na Resolução nº 2.324/2022. Para o psiquiatra Wilson Lessa esse é mais um demonstrativo de que o CFM não conhece as propriedades medicinais da planta e não está em sintonia com o que vem acontecendo no mundo científico. “Desde 2017 já existe um produto aprovado pela Anvisa com CBD e THC para ser vendido nas farmácias. O CFM quer ceifar o direito que o paciente já tem de se tratar com esses medicamentos? Na minha opinião, o mais grave não é nem a invasão ao direito médico, mas querer acabar com o direito de o paciente se tratar com essas moléculas. Isso é gravíssimo e vai aumentar ainda mais a judicialização dos casos. Agora, um Conselho de classe que não teve nem o cuidado de colocar o nome certo da molécula na Resolução está realmente preocupado com o paciente?”, questiona Lessa.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa do CFM para tentar repercutir a Resolução aprovada Sessão Plenária do Conselho Federal de Medicina, mas até o fechamento dessa edição não obteve resposta. Há um ano o Portal Cannabis & Saúde busca ouvir o CFM sobre a posição do órgão a respeito do uso medicinal da Cannabis, mas a instituição se mantém em silêncio.