Medo de errar de novo. De confiar em mais uma promessa que não se cumpre. De ser julgado. E é compreensível. Por trás da resistência, há história. Há cultura. Há confusão. E, acima de tudo, há repetição.
A verdade é que essa tensão nos acompanha desde que o ser humano aprendeu a extrair da natureza algo mais do que alimento
A papoula (Papaver somniferum) é um exemplo emblemático — de planta medicinal a símbolo geopolítico. Usada há milênios no Oriente para alívio da dor, deu origem ao ópio, que se tornaria pivô das chamadas Guerras do Ópio no século XIX, quando o comércio forçado dessa substância entre China e Europa expôs o quanto uma planta pode ser manipulada por interesses que nada têm a ver com saúde.
Daí, veio a morfina, depois os opioides sintéticos. E ao longo do caminho, a ciência descobriu o sistema opioide endógeno — com seus receptores mu, kappa e delta — revelando que, na verdade, nosso corpo já estava biologicamente preparado para responder a essas moléculas. O mesmo princípio ativo que trouxe alívio indescritível a pacientes com dor oncológica também alimenta hoje uma das maiores epidemias de dependência química da era moderna.
Da mesma flor, esperança e colapso. A folha de coca (Erythroxylum coca) também não escapa dessa duplicidade. Em altitudes andinas, seu uso tradicional remonta a milhares de anos, associado à vitalidade, à espiritualidade e à resistência física dos povos nativos — inclusive sendo considerada sagrada por muitas comunidades. Mas a história muda de direção quando a cocaína é isolada em laboratório, no século XIX. A substância, inicialmente celebrada como avanço médico, chegou a ser promovida por nomes influentes como Freud, que prescreveu cocaína como tratamento experimental para dor, fadiga e até mesmo dependência de morfina — tentativa que mais tarde se mostrou ineficaz e arriscada.
O entusiasmo inicial logo cedeu lugar ao reconhecimento de seu potencial de abuso. Ainda assim, foi justamente a partir dessa molécula que se desenvolveram anestésicos locais que revolucionaram a medicina. Derivados como a lidocaína, continuam sendo amplamente utilizados em procedimentos cirúrgicos e odontológicos, com segurança e eficácia, quando bem indicados.
Mais uma vez, a mesma planta que deu origem a um dos psicoestimulantes mais problemáticos da modernidade também está por trás de intervenções terapêuticas valiosas — tudo depende de como, quando e por quem é utilizada.
Tabaco
Com o tabaco (Nicotiana tabacum), a trajetória se inverte — mas carrega consigo uma ironia histórica. Durante séculos, povos originários das Américas utilizaram o tabaco em rituais sagrados de cura, conexão espiritual e proteção. Seu uso medicinal era extenso: cataplasmas com folhas aquecidas para dores musculares, infusões leves como antissépticos pulmonares. Mas o que era planta de medicina se transformou, nas mãos da indústria ocidental, em vetor de adoecimento.
No século XX, a ascensão do cigarro veio acompanhada de campanhas publicitárias agressivas que garantiam: “Médicos recomendam determinada marca”, “Seguro até para grávidas”, “Bom para a garganta” — frases absurdas hoje, mas veiculadas massivamente por jornais e revistas.
Enquanto isso, a mesma indústria ajudava a demonizar a Cannabis, associando-a a delinquência, preguiça e degradação social, numa campanha sustentada por interesses políticos e econômicos.
Hoje, o cigarro é legal, onipresente e aceito como um mal menor. Ninguém mais se lembra das propagandas dizendo que fazia bem. A memória coletiva é curta — e seletiva.
E ainda assim, ao falar de Cannabis medicinal, o que ouvimos?
“Não sabemos se é seguro”, “As evidências ainda são inconclusivas”, “Isso é coisa do demônio”. A mesma sociedade que normalizou o fumo por décadas se mantém cética diante de uma planta com centenas de estudos publicados e inúmeros casos clínicos positivos. Vale a pena refletir sobre isso.
O álcool tem origem vegetal — é produzido pela fermentação de açúcares presentes em frutas como uva, cereais como cevada e milho, e raízes como a mandioca.
Historicamente, teve seu lugar na medicina: utilizado como solvente para extratos fitoterápicos, antisséptico em feridas, e anestésico improvisado em tempos onde não havia alternativa melhor. Até hoje, o etanol é usado em contextos hospitalares para desinfecção de superfícies e equipamentos, e como veículo farmacológico em formulações orais. Mas o que era ferramenta terapêutica ancestral foi se convertendo, com o tempo, na substância psicoativa mais amplamente consumida do mundo.
Hoje, o álcool — em sua forma recreativa — não oferece qualquer benefício à saúde. Nenhum. Pelo contrário: é responsável por mais de dois milhões de mortes anuais, segundo a OMS, e está entre os principais fatores de risco para doenças hepáticas, câncer, transtornos mentais e acidentes graves.
Milhões de famílias foram desfeitas por seu abuso. Mesmo assim, segue legalizado, romantizado e protegido por um véu de normalidade cultural.
E isso nos leva a uma pergunta desconfortável: por que uma substância sabidamente tóxica é aceita com tamanha naturalidade, enquanto outras, como a Cannabis — cujos efeitos benéficos estão cada vez mais bem documentados — seguem enfrentando resistência e estigma?
Essa constatação nos conduz a uma reflexão inevitável: como podemos naturalizar o uso de uma droga sabidamente tóxica e, ao mesmo tempo, seguir demonizando outra substância — a Cannabis — cujo potencial terapêutico está sendo comprovado por estudos, revisões sistemáticas e casos clínicos em todo o mundo? E então chegamos à Cannabis (Cannabis sativa).
Uma planta medicinal milenar, usada por civilizações antigas em rituais, formulações terapêuticas e práticas religiosas, do Egito à Índia. Foi amplamente registrada em farmacopeias de diversos países até o século XX — período em que seu banimento ocorreu não por ineficácia, mas por um movimento político, racista e econômico, iniciado nos Estados Unidos e exportado para o resto do mundo.
A ciência foi colocada em segundo plano, e o estigma se tornou política pública. Hoje, após décadas de proibição infundada, o pêndulo começa a se reequilibrar. Com mais evidência e menos preconceito, os fitocanabinoides — como o CBD e o THC — vêm demonstrando efeitos claros na modulação do Sistema Endocanabinoide, um eixo fisiológico que regula funções como dor, sono, humor, memória e imunidade.
A resposta, no entanto, depende de variáveis clínicas e humanas — o composto certo, no paciente certo, com acompanhamento sério e responsável.
O ponto aqui não é defender planta nenhuma. É reconhecer que cada planta carrega um potencial — e que cabe ao ser humano escolher como se relacionar com ele.
A diferença entre o remédio e o veneno, entre o uso terapêutico e o abuso destrutivo, está na nossa intenção, na nossa condução e, sobretudo, na responsabilidade com que manejamos o conhecimento. Quando falo com meus pacientes sobre Cannabis, não ofereço promessas vazias nem soluções mágicas.
Ofereço o que sempre norteou meu trabalho: contexto, evidência e compromisso ético. A Cannabis medicinal, quando bem indicada e monitorada, pode mudar vidas. Mas sem critério, sem acompanhamento e sem escuta clínica, ela corre o mesmo risco de todas as outras: virar excesso, ilusão ou frustração.
A natureza oferece a matéria-prima — complexa, potente, ambivalente. Cabe a nós, com nossa história, cultura e escolhas clínicas, decidir se essa potência será transformada em remédio ou ruína. Nenhuma substância é má por essência. O que define o destino de cada planta é o olhar que lançamos sobre ela e o uso que escolhemos fazer. Esse discernimento, entre tratar e desvirtuar, é uma decisão humana. Sempre foi.