A paciente chegou ao meu consultório com meses de dor abdominal, distensão desconfortável e evacuações frequentes com sangue. Aos 65 anos, já diagnosticada com Doença de Crohn e após diversos tratamentos sem resultados satisfatórios, estava visivelmente desanimada, quase sem esperança de uma melhora.
A Doença de Crohn é uma enfermidade inflamatória crônica do trato gastrointestinal, caracterizada por um processo inflamatório ativo que pode afetar qualquer segmento do tubo digestivo, embora seja mais comum no íleo terminal e cólon.
Seus sintomas vão além do intestino: dores abdominais recorrentes, diarreia com sangue, perda de peso e fadiga se associam a manifestações extraintestinais e a um impacto funcional significativo. Na minha prática, acredito que a abordagem terapêutica moderna precisa ir além de simplesmente controlar os sintomas — é necessário modular o processo inflamatório de maneira profunda e restaurar a qualidade de vida do paciente.
Este relato ilustra como uma paciente que inicialmente veio à consulta apenas para renovar um guia de encaminhamento para o gastroenterologista terminou, por meio da modulação do Sistema Endocanabinoide, com remissão total dos sintomas e confirmação, por colonoscopia, do controle da doença. A escolha por um tratamento integrativo transformou o que parecia uma consulta rotineira em um marco clínico decisivo.
Primeira Consulta
A paciente relatava dor abdominal difusa, distensão e entre 5 a 10 evacuações diárias com sangue. Esses sintomas, persistentes por cerca de dois meses, indicavam uma fase ativa da doença.
Com um histórico de tratamentos convencionais sem sucesso, ela me confessou que já não acreditava em mais nada — estava ali apenas para solicitar encaminhamento ao gastroenterologista e exames de rotina. Nos últimos dois anos, havia feito vários tratamentos, todos sem êxito. Seu acompanhamento se resumia a exames semestrais de colonoscopia.
Após ouvir sua história, decidi sugerir uma abordagem alternativa. Expliquei os possíveis benefícios da Cannabis medicinal, tanto para o controle sintomático quanto para a modulação imunológica da doença.
Ela aceitou tentar.
Iniciamos com óleo misto na proporção 1:1 (CBD:THC) Full Spectrum, com titulação semanal: 2 gotas por dose na primeira semana (2,1 mg/dia de cada composto), aumentando progressivamente até 8 gotas/dose na quarta semana (8,4 mg/dia de cada composto).
Evolução clínica precoce e endoscopia inicial
Na segunda consulta, um mês depois, ela chegou transformada. Relatou melhora na dor abdominal já no primeiro dia de uso. Em apenas duas semanas, todos os sintomas — inclusive a diarreia com sangue — desapareceram. A melhora funcional e o impacto na qualidade de vida eram evidentes. Ela me trouxe o resultado de sua colonoscopia:
Apesar da evolução clínica impressionante, o exame realizado nesse mesmo período ainda mostrava inflamação significativa: proctite leve, pancolite erosiva intensa e sinais de doença hemorroidária. Ou seja, a inflamação ainda estava ativa em vários segmentos do intestino. Contudo, isso era esperado, já que a modulação estrutural leva mais tempo para ocorrer do que a resposta clínica. Mantivemos o tratamento e agendamos uma nova avaliação.
Retorno tardio e colonoscopia de comparação (terceira consulta)
Ela só conseguiu retornar sete meses depois, tendo usado o óleo CBD:THC 1:1 por quatro meses, mas interrompido nos últimos três por dificuldades de acesso. Para minha surpresa, manteve-se completamente assintomática durante todo esse período.
Ela trouxe uma nova colonoscopia. O resultado foi animador: a inflamação estava mais localizada e menos extensa, com áreas de mucosa preservada. A proctite havia desaparecido, não havia mais sinais de doença hemorroidária e surgiam cicatrizes e pseudopólipos, indicando que o intestino estava se reparando.
Discussão: atuação canabinoide na doença inflamatória intestinal
Esse caso ilustra com clareza o papel dos fitocanabinoides como agentes moduladores do eixo inflamatório intestinal, especialmente quando seus mecanismos de ação são alinhados com a fisiopatologia da Doença de Crohn.
Sabemos que, nessa condição, ocorre um desequilíbrio imunológico caracterizado pela ativação exacerbada de células T e liberação de citocinas pró-inflamatórias como TNF-α, IL-6 e IL-17 — uma hiperativação do sistema imune que mantém a inflamação intestinal.
O THC, ao ativar os receptores CB1 (no sistema nervoso entérico) e CB2 (nas células imunes), reduz o peristaltismo exacerbado e modula a inflamação, aliviando a dor visceral e controlando a resposta imune. O CBD, por sua vez, inibe diretamente as citocinas inflamatórias e ainda exerce efeito ansiolítico e anti-inflamatório adicional. Essa combinação ajuda a explicar tanto a melhora clínica precoce quanto a subsequente cicatrização tecidual.
A dissociação entre melhora clínica rápida e recuperação estrutural gradual é esperada. O que chama atenção, neste caso, é a manutenção da remissão mesmo após interrupção do tratamento e a melhora evidente na colonoscopia. Isso aponta para um efeito imunomodulador sustentado, mais profundo do que uma simples analgesia.
Conclusão
Este não é apenas um relato de resposta clínica. É, antes, um lembrete de que toda dor que se prolonga sem solução rouba também a esperança, e que parte do nosso papel como médicos é devolver essa esperança com uma abordagem terapêutica racional.
Neste caso, a Cannabis medicinal demonstrou não apenas a capacidade de alívio sintomático imediato, mas também teve um impacto mensurável e documentado na estrutura inflamada do intestino — mesmo após a suspensão do uso.
Além disso, esse caso fortalece o que tenho observado em pacientes com outras doenças inflamatórias de base autoimune, como Artrite Reumatoide, Espondilite Anquilosante, Artrite Psoriásica e até condições neurológicas como Esclerose Múltipla. São contextos fisiopatológicos em que o eixo inflamatório desregulado se entrelaça com sofrimento crônico e perda de autonomia.
Quando trabalhamos com fitocanabinoides de forma estratégica, fundamentada e integrativa, não estamos apenas propondo um alívio de sintomas. Estamos oferecendo uma via real de reequilíbrio sistêmico, capaz de influenciar positivamente a trajetória funcional desses pacientes.
Em um cenário ainda marcado por polarizações e reducionismos, reafirmo: a Cannabis medicinal, quando aplicada com precisão e propósito, é uma opção viável e cada vez mais eficaz na reconstrução de trajetórias clínicas que, até então, pareciam sem saída.
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