Embora essa questão possa parecer simples do ponto de vista legal, ela envolve questões mais amplas e profundas, que podem ser vistas como um retrocesso político em relação ao acesso e à garantia de direitos sociais e à saúde. De forma mais abrangente, essa situação coloca em pauta as limitações regulatórias e legislativas existentes.
Desde 2024, o STF discute se a Anvisa pode impedir a venda de produtos à base de Cannabis por farmácias de manipulação. A maioria dos ministros decidiu aplicar o Sistema de Repercussão Geral, que estabelece limites constitucionais e legais para esse impedimento. Isso significa que o STF reconheceu que o tema envolve a Constituição de 1988, tornando essa decisão aplicável a todos os processos relacionados ao assunto em todas as instâncias da Justiça.
O caso teve início em São Paulo, onde uma empresa alegou que a resolução da Anvisa viola princípios constitucionais, como o da legalidade, da liberdade econômica e do livre mercado. A empresa também trouxe à discussão a ausência de base legal para a Anvisa aplicar um tratamento diferenciado entre farmácias de manipulação e farmácias/drogarias. Assim, argumentou que a regulamentação da Agência havia extrapolado os poderes conferidos às autoridades sanitárias.
Após decisões favoráveis tanto na primeira quanto na segunda instâncias, o município de São Paulo, responsável pela fiscalização da atividade, recorreu ao Supremo Tribunal Federal. O município alegou risco à saúde da população, sustentando que o tema é uma questão de saúde pública e deve ser tratado com rigor técnico por especialistas da área médica.
O Ministro Relator, Alexandre de Moraes, apontou que há decisões em vários estados que, ora validam a resolução da Anvisa, ora impedem sua aplicação. Assim, é necessária a atuação da Corte, e ele destacou:
Considero que a questão trazida à discussão nestes autos apresenta densidade constitucional e extrapola os interesses subjetivos das partes, pois enfoca o poder regulamentar das agências reguladoras, em especial no qual envolvido o direito à saúde […] além disso, a controvérsia tem o potencial de multiplicar-se em inúmeras demandas em que se postula pedido semelhante.
É importante lembrar que, segundo a literatura, a Cannabis medicinal é uma planta complexa que contém mais de 400 compostos químicos, incluindo canabinoides, terpenos e flavonoides.
Assim a manipulação de Cannabis medicinal em farmácias é um processo complexo que requer conhecimento e habilidades específicas para garantir a qualidade e a segurança do produto final e não só com a liberdade econômica
Sabemos que, na Portaria 344/2019, as substâncias CBD e THC atualmente compõem suas listas como drogas controladas, e que as atividades de manipulação são regulamentadas pela ANVISA, incluindo a autorização para manipular drogas lícitas listadas na mesma portaria, que é sistematicamente atualizada pela Agência (como morfina e testosterona). Entretanto, é importante destacar que os variados compostos químicos da cannabis trazem uma complexidade farmacêutica à sua capacidade de interagir com outros compostos químicos.
Para entendermos melhor, vamos destacar alguns aspectos que ilustram os desafios farmacêuticos que a Cannabis inclui:
- Variabilidade da composição química: A composição química da Cannabis pode variar dependendo da cepa, das condições de cultivo, da quantidade de chuva e seu processamento.
- Instabilidade dos canabinoides: e podem se degradar rapidamente, o que pode impactar tanto a eficácia quanto a segurança do produto.
- Interações com outros compostos químicos: A Cannabis pode interagir com outros compostos químicos, incluindo medicamentos e suplementos, o que pode afetar a eficácia e a segurança do produto.
- Dificuldade de padronização: A padronização da Cannabis é um desafio devido à sua complexidade química e variabilidade.
Lembramos, ainda, alguns dos poderosos compostos químicos da Cannabis e sua complexidade, já mencionada anteriormente, para reflexão do leitor:
Canabinoides: São os principais compostos ativos da cannabis, responsáveis por seus efeitos terapêuticos. Os mais conhecidos são o THC (tetrahidrocanabinol) e o CBD (canabidiol), amplamente estudados por suas propriedades medicinais.
Terpenos e flavonoides: Compostos químicos responsáveis pelo aroma e sabor da Cannabis, que também possuem efeitos terapêuticos e podem interagir com os canabinoides.
Considerando essas informações químicas amplamente abordadas na literatura, é relevante destacar que a complexidade farmacêutica da Cannabis medicinal é elevada devido à sua composição química diversificada e à sua capacidade de interagir com outros compostos. A manipulação da Cannabis medicinal em farmácias é um processo que exige conhecimento técnico e habilidades específicas para garantir a qualidade e a segurança do produto final.
Alguns dos principais desafios nesse processo incluem:
- Seleção da cepa: A escolha da cepa de cannabis é crucial e envolve analisar propriedades genéticas e características desejadas, como efeitos terapêuticos e resistência a pragas.
- Processamento e extração: A extração deve preservar a composição química dos compostos ativos, utilizando métodos como extração com CO2 supercrítico ou com solventes, garantindo a pureza e segurança do produto.
- Formulação e padronização: Essenciais para garantir segurança e previsibilidade dos efeitos terapêuticos, através da combinação precisa de extratos com outros ingredientes e testes laboratoriais rigorosos.
- Controle de qualidade: Envolve testes contínuos para garantir que o produto final atenda aos padrões de segurança e eficácia, verificando potência, ausência de contaminantes e conformidade com normas regulamentares.
Sendo assim, não podemos deixar de registrar algumas etapas imprescindíveis a serem atendidas, considerando o rescende retorno da autorização do uso da planta e, portanto, as formações acadêmicas ainda não são obrigatórias nas grades curriculares da maioria dos cursos de formação acadêmica, então a educação e treinamento para a parte dos farmacêuticos e outros profissionais de saúde para o conhecimento das propriedades e os efeitos da Cannabis medicinal ocupam um lugar imprescindível nessa discussão.
A qualidade e a segurança são garantias inegociáveis
A manipulação deve seguir rigorosos padrões para evitar contaminação e outros riscos, sendo essa uma das normas sanitárias mais antigas e pertinentes. Os testes de laboratório são fundamentais para assegurar a segurança e eficácia da Cannabis manipulada, assim como a certificação da matéria prima e a regulamentação para a definição das disposições que vão ampliar a segurança e a eficácia da Cannabis de uso medicinal.
Cannabis sintética: uma alternativa viável?
A Cannabis sintética pode parecer uma opção mais fácil de manipular, pois é produzida em laboratório por meio de síntese química, recriando compostos idênticos aos encontrados na cannabis natural. Entretanto, seu custo de produção tende a ser mais elevado em comparação à Cannabis natural.
Outro fator relevante é a limitação da composição química da Cannabis sintética, que pode não conter todos os compostos presentes na planta natural, o que pode reduzir sua eficácia. Além disso, os efeitos colaterais podem ser diferentes e, em alguns casos, mais intensos, representando um risco ao tratamento dos pacientes. Dessa forma, a escolha entre a cannabis sintética e a natural deve considerar as necessidades específicas de cada paciente e a orientação do médico responsável.
Ampliação do acesso à Cannabis medicinal: desafios e perspectivas
A ampliação do acesso à cannabis medicinal é um tema cada vez mais relevante, pois essa opção terapêutica pode beneficiar diversas condições médicas. A possibilidade de manipulação do medicamento contribui para a acessibilidade, um fator crucial, especialmente para pacientes que vivem em áreas remotas ou enfrentam dificuldades para acessar serviços de saúde. Além disso, a personalização do tratamento pode melhorar significativamente a qualidade de vida dos pacientes, reduzindo sintomas e custos associados ao tratamento.
Diante desse cenário, a luta dos pacientes pelo direito ao acesso à Cannabis medicinal segue como uma demanda social legítima. No entanto, o avanço regulatório ainda enfrenta desafios, frequentemente barrado por entraves políticos e burocráticos. É essencial que as decisões regulatórias sejam pautadas pela segurança e pela eficácia do tratamento, garantindo que o acesso seja ampliado sem comprometer os padrões sanitários e legislativos necessários. O papel do Poder Judiciário e dos demais poderes da República é fundamental para assegurar que o direito à saúde seja garantido de forma segura e eficiente, sem ser prejudicado por interesses puramente políticos.
A advogada Maria José Delgado Fagundes assina esta coluna ao lado de Michelle Ramos, Química e Farmacêutica.
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Colabora com a Dra. Maria José Delgado neste conteúdo Michelle Ramos, Química e Farmacêutica.
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