O debate sobre o futuro da Cannabis no Brasil ganhou novos contornos na última edição do Cannabis Connection, realizada nesta quarta-feira (6), em São Paulo. O evento reuniu representantes da Embrapa, do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), da Anvisa, além de especialistas e lideranças do setor.
Estruturado em diferentes painéis , o encontro abordou desde o panorama do cânhamo e dados de mercado até os avanços regulatórios e as projeções para o comportamento do setor entre 2025 e 2026.
Porém, mais do que apresentar números e previsões, reforçou um consenso entre os debatedores: o cultivo nacional é o próximo passo inevitável para consolidar o setor e democratizar o acesso à Cannabis medicinal no país.
Da pesquisa à produção: os pilares para uma bioeconomia sustentável com Cannabis
A pesquisadora Beatriz Marti Emygdio, da Embrapa, apresentou uma análise do cenário global e das oportunidades que se abrem para o Brasil. Ela destacou que o país reúne vantagens únicas — biodiversidade, escala produtiva e matriz energética limpa — para liderar uma nova economia verde.
“A Cannabis é provavelmente uma das únicas espécies capazes de promover saúde humana, animal e ambiental dentro do conceito de saúde única”, afirmou Beatriz.
Beatriz ressaltou que a Estratégia Nacional de Bioeconomia, lançada em 2024, já coloca o país em posição de protagonismo, mas ainda faltam instrumentos para transformar o potencial em política efetiva.
“Precisamos construir cadeias produtivas sustentáveis, com base científica e integração regulatória. Não se trata apenas de plantar — é um ecossistema de pesquisa, inovação, indústria e rastreabilidade”, completou.
Pós-regulamentação
Outro ponto abordado foi a importância de planejar o cenário pós-regulamentação do cultivo. “O que importa é termos cadeias alinhadas aos desafios estratégicos da agricultura dos próximos 50 anos”, afirmou.
Entre esses desafios, ela destacou o aproveitamento de resíduos gerados na produção, como o material pós-extração — um subproduto ainda tratado como descarte biológico, mas que possui potencial para ser transformado em bioinsumos, área já explorada por pesquisas em andamento.
No campo regulatório, a especialista apontou que o Brasil ainda enfrenta barreiras estruturais para o desenvolvimento da indústria canábica, uma vez que a legislação atual separa rigidamente o uso medicinal do industrial. Essa divisão, segundo ela, impede que produtos desenvolvidos para uso médico sejam reaproveitados em outros segmentos, dificultando a consolidação de uma economia circular.
“Não adianta o Brasil estabelecer uma estratégia de bioeconomia se não tivermos cadeias produtivas sustentáveis e integradas a essa lógica”, ressaltou.
A palestrante também chamou atenção para a base científica e tecnológica necessária ao desenvolvimento do setor.
“O Brasil precisa decidir se será importador ou exportador de tecnologias”, afirmou, destacando que essa escolha dependerá da forma como o país regulamentará o cultivo e permitirá a pesquisa com a planta — ainda bastante limitada atualmente.
Encerrando sua fala, a pesquisadora destacou a força da rede Embrapa, composta por 43 unidades de pesquisa distribuídas em todas as regiões do país, além de laboratórios no exterior e uma equipe de mais de 7.800 profissionais.
“Essa estrutura é um diferencial estratégico para o Brasil desenvolver soluções próprias e sustentar o avanço da bioeconomia com base científica sólida”, concluiu.
MAPA reforça apoio à regulamentação
Representando o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), Ana Paula Porfírio reforçou o posicionamento favorável à regulamentação da Cannabis medicinal e industrial.
“O posicionamento do Ministério é totalmente a favor da Cannabis — tanto industrial quanto medicinal. A questão recreativa não é pauta, porque o país ainda não está preparado para isso”, afirmou.
Ela destacou que as conversas com as equipes estão em andamento e que o clima é de otimismo.
“Brinco que estou ‘assando o frango’ — acertando os detalhes para que tudo saia bem. Estamos preparando o terreno para uma regulamentação coerente”
A representante do MAPA também revelou que o Ministério está prestes a publicar uma portaria que regulamenta o uso veterinário da Cannabis, além de estudar formas de incluir associações canábicas no sistema de orgânicos.
Quando o setor floresce em números
O segundo bloco do Cannabis Connection 2025 foi dedicado ao Panorama do Canal Farma e das Importações Medicinais, trazendo um retrato detalhado do desempenho do setor.
Filipe Campos, líder de Market Insights da Close Up Internacional, abriu a sessão com uma análise das tendências de venda e prescrição nas farmácias brasileiras.
“Olhando o desempenho das empresas, vemos algumas com performance mais lenta, o que puxa o mercado como um todo. Por outro lado, há crescimentos expressivos e um movimento claro de consolidação do setor”, afirmou.
Segundo Filipe, o mercado ainda é concentrado nas grandes marcas, mas o segmento de extratos vem avançando mais rapidamente que o de isolados. Atualmente, os isolados representam 62% das vendas, enquanto os extratos correspondem a 37%, embora sejam os que mais crescem — com 35% de aumento em volume.
O avanço também se reflete no comportamento dos prescritores. Nos últimos 12 meses, o número de médicos que indicaram Cannabis subiu de 46 mil para 61 mil, um crescimento de 30%. A média de prescrições por profissional também aumentou — de 6,2 para 6,7 receitas anuais, um salto de 9,2%.
Entre as especialidades, os neurologistas têm a maior proporção de médicos que prescrevem Cannabis, com 27%, seguidos por psiquiatras e pediatras. Porém, em números absolutos, os clínicos gerais continuam sendo a maioria dos prescritores, devido à grande quantidade dessa especialidade no país.
“O potencial de expansão é imenso — especialmente entre neurologistas, psiquiatras, clínicos gerais e pediatras. É um campo de conscientização e educação médica”, completou.
As importações que movem o mercado: a engrenagem da Cannabis medicinal no Brasil
Carolina Bilatto e Lucas Goulart, da Kaya Mind, apresentaram dados sobre as importações de Cannabis medicinal via RDC 660, principal canal de acesso para mais de 300 mil pacientes brasileiros. Segundo eles, o crescimento contínuo desse mercado reflete tanto a confiança quanto a demanda crescente por essa alternativa terapêutica.
Somando os últimos dois anos, o país já contabiliza mais de 320 mil pacientes válidos, com autorizações ativas para o uso de Cannabis medicinal. E a projeção, segundo a consultoria, é que esse número aumente ainda mais até o fim de 2025.
Outro dado que chama atenção é a capilaridade crescente da prescrição. Desde o início do monitoramento, 4.811 municípios, o equivalente a 86% do território nacional, já registraram ao menos uma prescrição de Cannabis medicinal.
A clínica médica lidera o ranking de prescrições, com 46%, seguida por neurologia, psiquiatria e medicina de família. Segundo Lucas Goulart, esse protagonismo está diretamente ligado à expansão da telemedicina e de marketplaces de prescrição, que democratizaram o acesso entre pacientes e profissionais.

Apesar do avanço, ainda há amplo espaço de crescimento. Entre as dez especialidades que mais prescrevem, a taxa média de adesão permanece abaixo de 3%, o que evidencia tanto o potencial quanto a necessidade de educação médica continuada.
“Há muito mais médicos tratando condições relacionadas que ainda não prescrevem Cannabis”, observou Goulart. “Isso mostra o tamanho da oportunidade — e da responsabilidade — que o setor tem em disseminar conhecimento.”
Anvisa destaca avanços e desafios na regulação da Cannabis
O gerente de medicamentos específicos e fitoterápicos da Anvisa, João Paulo Perfeito, iniciou sua participação abordando os principais pontos do processo regulatório e os desafios enfrentados pela agência.
“A Anvisa tem avançado muito na regulação da Cannabis medicinal no Brasil. É um tema sensível, que exige responsabilidade técnica e articulação com outros órgãos de governo, mas os avanços já são notórios”, afirmou.
Segundo ele, a regulação precisa manter o equilíbrio entre segurança, qualidade e acesso.
Durante o debate, Perfeito comentou a recente reunião da diretoria da agência.
“Na apresentação do diretor Thiago Campos, foram explicados os motivos para a prorrogação do prazo da regulamentação do cultivo, com destaque para pontos fundamentais como a não limitação do teor de THC e o incentivo à pesquisa no país. Essa abertura representa um passo importante para uma norma mais adequada à nossa realidade.”
A fala do representante da Anvisa foi seguida pelo advogado Leonardo Navarro, que reconheceu o esforço técnico da agência, mas ressaltou que o avanço regulatório precisa caminhar junto com a evolução legislativa para garantir o pleno desenvolvimento do setor.
“A Anvisa vem fazendo um trabalho técnico importante e merece reconhecimento. Mas, ao mesmo tempo, existe um grande anseio para que a regulação avance, permitindo que mais pacientes tenham acesso a diferentes tipos de produtos e que esses produtos sejam convertidos em medicamentos de qualidade”, destacou.
Navarro reforçou que é essencial ampliar as possibilidades de atuação do setor, garantindo segurança jurídica e atração de investimentos. O advogado destacou ainda a importância de preservar e aperfeiçoar todas as vias de acesso existentes, incluindo a importação.
Atualização da RDC 327 pode chegar ainda em 2025
Perfeito também falou sobre as possíveis alterações na RDC 327, norma que regula a comercialização da Cannabis nas farmácias — e cuja atualização já era esperada.
Segundo ele, as mudanças ainda estão em análise pela equipe jurídica e dependem da designação de um relator para seguir à publicação no Diário Oficial da União.
“Acreditamos que a atualização possa ser publicada ainda este ano”, afirmou.
Ciência, regulação e mercado: o futuro da Cannabis no Brasil
Ana Gabriela Baptista, CEO da TegraPharma, que acompanha o setor desde o início, avalia que o mercado brasileiro de Cannabis caminha para uma fase de maior clareza e previsibilidade, especialmente na produção nacional para uso medicinal. Segundo ela, a transformação do setor dependerá da integração entre pesquisa clínica, desenvolvimento tecnológico e produção regulada.
“Não se trata de substituir modelos existentes, mas de evoluir para garantir qualidade, rastreabilidade e segurança, alinhando-se às melhores práticas de mercados maduros. Ao ampliar dados clínicos nacionais, estabelecer protocolos padronizados e capacitar profissionais de saúde, a Cannabis deixa de ser percebida como exceção e passa a integrar o cuidado terapêutico convencional”, afirma Ana Gabriela.
Ela conclui que ciência, regulação e escala produtiva responsável serão os pilares para fortalecer o setor e posicionar o Brasil como um polo de inovação em Cannabis na América do Sul e no mundo.
O clima do Cannabis Connection 2025 refletiu exatamente esse espírito: um setor em transformação, marcado pelo consenso entre especialistas e participantes de que o futuro depende da integração entre ciência, regulação e mercado, com diálogo, segurança e inovação como pilares para o seu desenvolvimento.













