A médica veterinária brasileira Karla Pinto formou-se em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Goiás, no Brasil. Há mais de 20 anos, se estabeleceu em Portugal, mas, mesmo a distância, mantém um olhar atento sobre o que ocorre no Brasil, especialmente no que diz respeito à terapia canabinoide para animais. Atualmente, Karla realiza suas pesquisas sobre Cannabis para saúde animal na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Portugal, onde se dedica a explorar como os compostos presentes na planta podem beneficiar pacientes veterinários oncológicos.
Para ela, o Brasil está perdendo tempo em não cultivar cânhamo e observa curiosa as limitações em relação ao acesso de produtos para saúde animal que seus colegas conterrâneos enfrentam por aqui.
“Portugal é um país pequeno, do tamanho de Pernambuco, com 10 milhões de habitantes e se tornou o segundo maior exportador do mundo. É impensável que o Brasil, com seu imenso território e diversidade, não aposte no cânhamo. Essa planta possui um potencial imenso não apenas na medicina, mas também na nutrição animal e em diversas outras áreas da veterinária”, afirmou.
Terapia canabinoide muito mais que óleos
Igualmente, Karla destacou que a Cannabis pode ser muito mais do que um simples óleo. Há uma “panóplia de utilizações” que ainda precisa ser explorada, incluindo a utilização das sementes da planta como alimentação para aves. “Os ovos de galinhas alimentadas com sementes de cânhamo, por exemplo, têm maior teor de ômega 3, o que traz benefícios diretos para a saúde dos consumidores. O potencial da cannabis para melhorar a qualidade da dieta e contribuir com a saúde de muitos animais é vasto”, completou.
Para ela, a utilização de produtos com fitocanabinoides na medicina veterinária tem ganhado atenção, mas é fundamental desmistificar a ideia de que esses produtos são inócuos. Karla ressalta que a administração dessas substâncias deve sempre ser acompanhada por um veterinário qualificado. “É preciso monitorar as enzimas hepáticas e ajustar as doses de acordo com as necessidades individuais de cada animal”, explica. Para ela, a necessidade de acompanhamento é fundamental, pois a resposta ao tratamento varia de um animal para outro, dependendo de fatores como idade e tipo de doença.
“Às vezes, um animal responde muito bem ao tratamento, enquanto outro pode demorar mais para notar mudanças”. Além das questões técnicas, Karla aponta para um obstáculo cultural que afeta a aceitação dessa terapia no Brasil.
“Brasil tem uma parte religiosa que ainda não concorda com este tipo de terapia. É verdade. E isso também não ajuda que as coisas evoluem, mas é uma coisa certa, o Brasil em pesquisa é o melhor do mundo para mim”, pontua.
Apesar dos desafios, Karla é otimista quanto ao potencial do Brasil na pesquisa sobre fitocanabinoides. Para ela, a ciência pode avançar e, assim, beneficiar os animais que precisam de novas opções de tratamento, permitindo que o Brasil realmente aproveite todo o seu potencial na área da medicina veterinária.
Leia na íntegra nossa entrevista com Karla
Há produtos da medicina veterinária com fitocanabinoides específicos para animais?
A parte da Cannabis aqui em Portugal, ou seja, medicamentos, eu não estou falando de suplementos ou alimentos, porque aqui na Europa nós temos uma lei chamada Lei dos Novos Alimentos e o óleo com o CBD pode ser englobado nesse nos novos alimentos, porque são óleos feitos de cânhamo.
Não é da marijuana. Então, aqui nós temos um imbróglio. Nós temos marijuana, que é medicinal, os suplementos feitos com cânhamo e alimentos feitos com cânhamo. Então, aqui nós temos legislação para essas três vias. Em relação à veterinária, medicamentos com Cannabis, com bula, com indicação clínica, nós temos em farmácias que podemos prescrever. Ou seja, é um extrato normal, THC, CBD, e os veterinários podem prescrever com uma prescrição especial. Se alguém quiser fabricar aqui em Portugal, ou na Europa, um medicamento veterinário aqui pode fazer.
Mas é o único medicamento que a entidade que regula é Infarmed, que é igual à Anvisa no Brasil. Já os outros medicamentos são regulados pela Direção Geral de Alimentação e Veterinária, que é o Ministério da Agricultura no Brasil. A Cannabis é o único que nós somos regulados pela parte humana dos medicamentos.
A Infarmed pegou essa parte da Cannabis medicinal para eles, inclusive a veterinária. Aqui nós podemos fazer pesquisa, prescrição independente do teor de THC. O problema é o custo, que ainda é alto. Nem toda farmácia tem, pois Portugal é um país pequenininho, só agora o ano passado é que saíram vários extratos e com preços um pouco mais acessíveis do que os medicamentos que já eram importados. Então nós vamos para o cânhamo.
E é um mercado que é liberado e aí vem o problema, porque há muitos produtos, uns são bons, outros não. Os produtos que vocês vão utilizar, os veterinários, no Brasil, aqui nós não consideramos medicamentos, são suplementos. É o meu choque quando vejo que vocês vão utilizar algo que aqui não é preciso prescrição médica.
Produtos com CBD feitos de cânhamo, nós encontramos na internet. E aí vem o problema, o excesso de produto via internet de origem duvidosa aqui em Portugal.
O cânhamo você diz até 0.3% de THC, certo?
Sim. Exatamente. Na Suíça é 1%, cada país tem a sua própria legislação. Nós tínhamos 02, eles fizeram 03, para ficar parecido com os Estados Unidos, mas depois nós temos uma Itália que pode até 06, a Suíça a 1% e a Bélgica que não pode ser, tem que ser 0% de THC.
Em alguns países há diferenças, mas são poucas. Mas para circular na União Europeia, o máximo permitido é de 0.3 de THC.
Carla, há produtos à base de Cannabis especificamente para animais em Portugal? Ou se utiliza produtos à base de Cannabis desenvolvidos para humanos em animais?
Eu faço as duas coisas. Aqui em Portugal nós temos um produto que pode ser vendido em clínicas, ele tem uma dose baixinha de CBD, tem 5 mg por ml. E é base de cânhamo e é mesmo para animais.
Esse produto eu utilizo numa fase inicial. Em animais com um processo articular degenerativo, uma dorzinha ligeira, animais senis, que já começam a parte cognitiva a ficar alterada, eu e os meus colegas prescrevemos esse. Para a terapia, não.
Mas o que eu uso normalmente são produtos para animais que estão disponíveis no mercado, porque tem menos sabor. Eles utilizam menos terpenos. Então, para um gato tem diferença, porque o gato não vai espumar, vai tolerar bem o sabor. E em cães grandes posso utilizar o produto humano porque fica mais acessível, mais barato, eu utilizo normalmente um produto que é 5%.
Normalmente os óleos humanos tem uma parte também para veterinária. E tem para cavalo, tem para exóticos. O que só que eles vão tirar um pouquinho dos terpenos para tirar o sabor da planta para o animal aceitar melhor.
Para palatabilidade, até mesmo para não ficar tão espesso. Então para tirar esse sabor. E eu faço muito terapia em gato e tem diferença do produto humano para o veterinário, tem o CBD e os outros fitocanabinoides também, mas eles suavizam o sabor. Ou colocam sabor a bacon, sabor a carne, existe isso também.
Quais são os principais achados da sua pesquisa com Cannabis medicinal em pets até agora?
Nessa fase da pesquisa estamos a ver a expressão dos receptores canabinoides, ou seja, do CB1, do CB2 e nós vamos fazer outros receptores em animais que tem o câncer, o melanoma oral.
Melanoma é um tumor agressivo, de difícil tratamento. O cão é um modelo muito bom, ou seja, infelizmente o cão vem doente, mas ele pode servir como modelo de estudo para o ser humano. É o modelo que a gente fala translacional.
A gente pode utilizar o cão, também projetando no ser humano, ou seja, para já a gente viu que há expressão diferente do receptor canabinoide tipo 1, e o tipo 2, nos melanomas orais. O tipo 2 teve uma expressão muito grande. O que isso significa?
Que há uma inflamação acentuada, que o sistema imune está hiperreativo e o receptor canabinoide tipo 1 quase não apareceu. Na maioria dos cânceres, o CB1 tem uma expressão aumentada no caso do melanoma oral. Nós não tivemos essa resposta.
Então, o nosso estudo basicamente tem a ver com câncer oral, chamado melanoma oral. E nós tivemos assim resultados interessantes. Mas e aí, a segunda parte é a parte clínica do desenvolvimento, tratar animais doentes e ver como é que eles respondem com a terapia canábica.
Quando você começa esta segunda fase do seu estudo?
Provavelmente, isso tem a ver com comissões de ética, que aqui é bastante apertada.
São meses para eles darem resposta, porque realmente a Europa é muito apertada com estudos com animais e provavelmente no fim desse ano ou início do próximo a gente já começa com a utilização de animais. No caso, a gente vai fazer com a marijuana, eu falo marijuana que é só para separar, ou seja, produtos que tem THC e são como medicamentos, não como suplementos.
Carla, a última pergunta para gente encerrar, em quais patologias você vê o maior potencial da Cannabis para saúde animal?
O potencial é gigantesco.
Já é um potencial de pesquisa imenso, o carro chefe é dor, dor crônica, a síndrome da disfunção cognitiva, que é o equiparável ao Alzheimer, tudo que é doença degenerativa na verdade.
Doenças inflamatórias, por exemplo, doença inflamatória intestinal, gengivite, cistite, não é essas doenças também dos gatos tem muito também a ver com o foro emocional e autoimune, epilepsia.
A ansiedade, eu fico um pouquinho com o pé atrás, porque a ansiedade é multifatorial e é muito complexo. Mas o que eu acho que é um animal que dorme pouco por dor, é ansioso e quando eu trato a dor, vai dormir melhor e vai ficar menos ansioso.
A ansiedade tem potencial, mas a dor aqui é o carro-chefe, dor, doenças degenerativas, sinônima de disfunção cognitiva e epilepsia e doenças inflamatórias. E no meu caso, a parte oncológica.
E na parte da oncologia, é um duplo viés, é tanto no paliativo como no curativo. É um potencial, falo potencial porque a gente tá na fase embrionária de pesquisa.
Mas vai chegar um dia, quer dizer, a gente pode desenvolver um produto que tem uma permeabilidade alta na célula tumoral e a gente tem um efeito grande na parte do tumor em si. Então, a gente está pensando em tratamento contra o tumor. Mas, o animal vai ficar com apetite, não vai ter dor, ou seja, a gente trata aqui a parte paliativa toda. É outro potencial imenso, imenso.
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: Em humanos, o acesso legal à Cannabis medicinal no Brasil é permito mediante indicação e prescrição de um profissional de saúde habilitado. Caso você tenha interesse em iniciar um tratamento com canabinoides, consulte um profissional com experiência nessa abordagem terapêutica.
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