A redução de danos é uma abordagem de saúde pública que busca minimizar os impactos físicos, psicológicos e sociais do uso de substâncias, sem exigir abstinência. Baseada em princípios de informação, cuidado, respeito e direitos humanos, contrapõe-se a políticas punitivas, defendendo medidas fundamentadas em evidências.
A estratégia surgiu como resposta à vulnerabilidade de grupos marginalizados, especialmente durante a epidemia de HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. Janaína Rubio Gonçalves, coordenadora do Centro de Convivência É de Lei, explica que o conceito nasceu da luta de usuários de drogas injetáveis pelo acesso à saúde. “Eles sofreram muito preconceito e estigma no sistema de saúde. A redução de danos é construída por, para e com usuários de drogas, com protagonismo dessas pessoas na formulação de políticas”, afirma. Fundado em 1998, o É de Lei atua na promoção de práticas que diminuam danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas.
“É necessário ser protagonistas das histórias, das vivências e construir as políticas de drogas. O É de Lei foi construído por, pelo e para usuários de drogas”, pontua.
Já Renato Filev, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, reforça que é necessário trabalhar a redução de danos sob uma perspectiva ética e política mais ampla. Para ele, a política de drogas vigente no Brasil é iatrogênica, ou seja, produz mais danos e custos sociais do que benefícios. Embora reconheça que a Cannabis pode ser uma ferramenta para auxiliar pessoas com transtorno por uso de substâncias a substituir ou reduzir o consumo de drogas mais nocivas, Filev ressalta que isso não se aplica a todos os casos e que a regulação da cadeia produtiva de drogas é essencial para reduzir danos de forma efetiva.
“A maconha ser usada como uma ferramenta para tratar pessoas com transtorno por uso de substâncias, não serve para todo mundo, para todos os casos, ela pode ser usada em alguns casos a depender da pessoa e do contexto ao qual ela está inserida, mas que a gente entende que reduzir danos seria regular a cadeia produtiva das drogas”, avalia Filev.
Uma lupa na Cannabis medicinal no contexto de redução de danos
No contexto da Cannabis medicinal, a relação com a redução de danos se dá principalmente pelo potencial de substituir ou reduzir o uso de substâncias de maior risco, como opioides — amplamente utilizados no tratamento da dor crônica — e benzodiazepínicos, prescritos para ansiedade e insônia. Pesquisas indicam que, ao oferecer uma alternativa terapêutica menos propensa a causar dependência e efeitos adversos graves, a cannabis pode desempenhar um papel clínico relevante. Além disso, em alguns casos, a planta tem sido utilizada como apoio em processos de controle de vícios, ajudando a reduzir danos à saúde física e mental.
O mecanismo de ação da Cannabis medicinal envolve a modulação do sistema endocanabinoide, que interage com receptores CB1 e CB2, influenciando dor, inflamação, sono, ansiedade e náusea. O Canabidiol (CBD) apresenta propriedades anti-inflamatórias, ansiolíticas e antieméticas, enquanto o Canabigerol (CBG) desponta como potencial agente neuroprotetor, embora as pesquisas clínicas em larga escala ainda sejam limitadas.
Em pacientes submetidos à quimioterapia ou a tratamentos gastrointestinais complexos, formulações padronizadas de THC e CBD têm mostrado benefícios no controle de náuseas e na melhora da tolerância ao tratamento. O manejo de ansiedade e insônia também pode se beneficiar de preparações ricas em CBD ou combinações balanceadas de CBD/THC, desde que cuidadosamente monitoradas para evitar efeitos psicoativos indesejados.
Estudos internacionais apontam resultados consistentes na redução do consumo de opioides com o uso da Cannabis medicinal
Revisões científicas mostram que pacientes com dor crônica reduziram o uso desses analgésicos em até 64%, com melhora da qualidade de vida em quase metade dos casos, e que estados norte-americanos com leis de cannabis medicinal registraram até 33% menos mortes por overdose de opioides ao longo de seis anos. Também há evidências de impacto sobre o uso de benzodiazepínicos: um estudo com 146 pacientes revelou que 30% interromperam o uso desses medicamentos após dois meses de tratamento com cannabis, chegando a 45% após três meses.
Apesar dos resultados promissores, o campo enfrenta desafios importantes. A variabilidade genética das plantas, as diferenças nos métodos de cultivo e extração, e as distintas proporções de THC, CBD e outros compostos dificultam a padronização terapêutica. Além disso, faltam dados robustos sobre dosagens ideais, indicações específicas, interações medicamentosas e efeitos a longo prazo. Especialistas reforçam que o uso deve ser acompanhado por médicos capacitados, com educação sobre uso responsável e monitoramento rigoroso para prevenir riscos e dependência.
A discussão sobre a cannabis, reconhece seu potencial como ferramenta de redução de danos e alternativa terapêutica segura, especialmente diante do uso de opioides e do uso crescente de benzodiazepínicos. Qualidade controlada, rastreabilidade e participação ativa de usuários nas políticas públicas são elementos-chave para que a Cannabis possa contribuir, de fato, para um modelo de saúde mais ético, humano e eficaz.
Cannabis medicinal e HIV/Aids: um caminho para mais qualidade de vida?

















