Segundo dados, de 2024, do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) houve um avanço importante: 96% das pessoas que vivem com HIV no Brasil conhecem seu diagnóstico, 82% delas estão em tratamento antirretroviral, e 95% das que fazem uso da terapia estão com a carga viral suprimida. Os números reforçam a efetividade da TARV (terapia antirretroviral) e a importância do diagnóstico precoce.
O diagnóstico precoce do HIV é essencial para garantir uma maior eficácia no tratamento da AIDS e melhorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com o vírus. Quando o HIV é detectado em estágios iniciais, é possível iniciar a terapia antirretroviral imediatamente, diminuindo a carga viral e o risco de transmissão da doença. Embora o Brasil ofereça testes rápidos gratuitos em diversas unidades de saúde, muitos ainda não se submeteram a eles devido ao preconceito e à falta de informação.
Você já fez o teste de HIV?
Confesso: quando fiz o teste de HIV pela primeira vez, não dormi na noite anterior. Fui consumida por pensamentos sobre tudo o que poderia acontecer caso o resultado fosse positivo. Os resultados foram negativos, assim como nas outras duas ocasiões em que testei, durante minhas gestações. No entanto, o que mais ficou comigo foi a sensação de como um diagnóstico poderia transformar a minha vida.
Afinal, viver com HIV/Aids pode sim carregar um peso emocional e físico. Dor crônica, distúrbios do sono, perda de apetite, depressão e ansiedade são queixas que impactam diretamente a qualidade de vida. É nesse campo que a Cannabis medicinal vem se consolidando como uma ferramenta complementar relevante no cuidado integral.
Cannabis e HIV/Aids: um elo histórico
A relação entre a Cannabis e o HIV/Aids não é nova. Nos Estados Unidos, especialmente na Califórnia, a mobilização pelo direito ao uso medicinal da planta surgiu, em grande parte, por pacientes com Aids que buscavam alívio para sintomas debilitantes.
Enquanto nos EUA o protagonismo veio de ativistas soropositivos, no Brasil o impulso veio de mães de crianças com epilepsia refratária. Hoje, o debate sobre o uso da Cannabis no cuidado de pessoas com HIV/Aids começa a ganhar força em território nacional, tanto no campo clínico quanto jurídico.
“A Cannabis medicinal tem sido uma aliada valiosa no cuidado de pessoas vivendo com HIV/Aids, especialmente no alívio de sintomas que ainda podem afetar o bem-estar, mesmo com o uso da TARV”, afirma a médica infectologista Dra. Laís Vasconcellos.
Ainda segundo a médica, é imprescindível esclarecer a diferença entre ter HIV e ter AIDS
“É fundamental compreender que ter HIV não significa ter AIDS. O HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) é um vírus que ataca o sistema imunológico, enfraquecendo as defesas naturais do corpo. No entanto, graças aos avanços da medicina, hoje é totalmente possível viver com HIV com saúde, autonomia e qualidade de vida. A AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é o estágio mais avançado da infecção, quando, sem tratamento adequado, o sistema imune fica muito comprometido e passam a surgir infecções oportunistas e até alguns tipos de câncer. Felizmente, com o uso regular da Terapia Antirretroviral (TARV), muitas pessoas vivem com HIV por décadas sem desenvolver AIDS — e sem sintomas”.
O que dizem as evidências científicas
Estudos científicos têm reforçado o potencial terapêutico da Cannabis no cuidado de pessoas vivendo com HIV, especialmente em situações clínicas que afetam diretamente a qualidade de vida. Um dos trabalhos mais citados é o estudo conduzido pela University of California, San Diego, que demonstrou que o uso da Cannabis fumada pode reduzir significativamente a dor neuropática — um tipo de dor crônica e debilitante, comum em pessoas com HIV. Os participantes do estudo relataram alívio importante dos sintomas quando comparados ao grupo que recebeu placebo.
Outra contribuição relevante vem do estudo que avaliou a relação entre o uso da planta e a adesão ao tratamento antirretroviral (TARV). Os resultados indicam que, ao aliviar sintomas como náuseas, fadiga e perda de apetite — especialmente no início da terapia e assim como no câncer —, a Cannabis pode favorecer a continuidade do tratamento.
Além disso, evidências mais recentes sugerem que o uso regular da Cannabis pode ter efeitos anti-inflamatórios sistêmicos. Isso é particularmente relevante para pessoas com HIV, que frequentemente apresentam inflamações crônicas mesmo com a carga viral controlada. A redução desses processos inflamatórios pode ter impactos positivos na saúde cardiovascular, neurológica e imunológica dos pacientes.
Vozes que vivem essa realidade
Segundo Vanessa Campos, criadora do perfil @soroposidhiva, onde compartilha sua experiência com HIV/Aids, ele vive com HIV/AIDS há 32 anos, recebeu seu diagnóstico positivo em março de 1992, aos 19 ano. Desde então, desafia estigmas e preconceitos, optando por viver plenamente e sonhar alto. Atualmente é mãe de três filhos de relacionamentos sorodiferentes. E começou a utilizar Cannabis medicinal após ter Covid-19 e passar a conviver com dores intensas de cabeça:
“Nunca havia usado Cannabis até ter Covid e passar por dores de cabeça muito fortes. O uso da planta me trouxe alívio nas crises. Foi um alívio inesperado e, até hoje, noto a diferença, principalmente porque os efeitos colaterais são quase inexistentes se comparados aos de medicamentos convencionais”.
Vanessa se chama carinhosamente de “SoroposiDHIVA”, transformando sua trajetória em um testemunho de força, coragem e uma luta ativa pela vida. “Viva a vida!”, celebra ela, mantendo firme seu compromisso com a saúde e a conscientização sobre a doença.
O cenário brasileiro do HIV/Aids
Neste sentido, a médica Dra. Laís Vasconcellos defende o uso clínico baseado em evidências, com segurança e personalização. A profissional pontua que a Cannabis não substitui o tratamento antirretroviral, mas, sim pode melhorar a qualidade de vida em diferentes aspectos. O importante é que seja usada de forma responsável, com acompanhamento médico e em formulações seguras.
Saúde mental: outro pilar essencial na qualidade de vida
A saúde mental de pessoas com HIV é frequentemente afetada por ansiedade, depressão e insônia. Nesses casos, o CBD (canabidiol) tem demonstrado efeitos ansiolíticos, enquanto o THC, em doses controladas, pode ajudar no sono.
A Cannabis pode, assim, funcionar como um suporte complementar, promovendo bem-estar emocional e fortalecendo a autonomia de quem vive com HIV.
Panorama atual da epidemia
Segundo o relatório UNAIDS 2024, 40,8 milhões de pessoas vivem com HIV no mundo. No Brasil, já são mais de 540 mil casos notificados desde 2007, com destaque para o Sudeste (41%) e Nordeste (21,9%). O aumento entre jovens e mulheres com mais de 50 anos indica mudanças no perfil da epidemia e exige estratégias de prevenção específicas.
A razão de sexo também aumentou: em 2007, havia 14 homens diagnosticados para cada 10 mulheres; em 2023, essa relação subiu para 27 homens para cada 10 mulheres. Jovens de 15 a 24 anos representam 23,2% dos novos casos, enquanto 77,7% das mulheres diagnosticadas estão em idade reprodutiva.

Taxa de detecção de aids (por 100.000 hab.) segundo Unidade Federativa e capital de residência. Brasil, 2023. Segundo relatório do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS).
Leia a entrevista completa com a Dra. Laís Vasconcellos
Quais os principais benefícios clínicos observados no uso da cannabis medicinal para pacientes vivendo com HIV/AIDS, especialmente em relação à dor crônica, náuseas e perda de apetite?
A Cannabis medicinal tem sido uma aliada valiosa no cuidado de pessoas vivendo com HIV/AIDS, especialmente no alívio de sintomas que ainda podem afetar o bem-estar mesmo com o uso da TARV.
- Dor crônica: Um dos quadros mais relatados por pessoas vivendo com HIV é a dor neuropática, que pode surgir por inflamação ou lesões nos nervos. Estudos científicos demonstram que o uso controlado de formulações à base de THC pode ajudar a aliviar esse tipo de dor, especialmente quando os tratamentos convencionais não trazem alívio adequado.
- Náuseas: Embora os efeitos colaterais dos antirretrovirais sejam bem menores hoje em dia, alguns pacientes ainda podem sentir náuseas, especialmente no início do tratamento. A cannabis, especialmente o THC, tem ação antiemética comprovada, reduzindo esses sintomas e ajudando a manter a adesão à medicação.
- Perda de apetite e emagrecimento: O HIV pode causar, em alguns casos, perda de apetite e peso. O THC estimula o apetite e, em alguns estudos, foi associado à estabilização do peso em pacientes com AIDS, sendo uma ferramenta útil no cuidado da saúde nutricional.
O uso da Cannabis medicinal deve sempre ser individualizado, com orientação profissional e em formulações seguras, como óleos e cápsulas, que oferecem controle preciso das doses.
Há evidências de que a Cannabis possa interferir positiva ou negativamente na resposta imunológica ou na eficácia da terapia antirretroviral?
Segundo os estudos mais recentes, o uso responsável da cannabis medicinal não interfere negativamente na resposta imunológica nem na eficácia da terapia antirretroviral (TARV).
- Pesquisas apontam que o uso medicinal da cannabis em pessoas com HIV não está associado à redução de células CD4 nem ao aumento da carga viral. Algumas evidências sugerem, inclusive, que pode haver redução de processos inflamatórios crônicos em usuários regulares, o que pode beneficiar a saúde como um todo.
- A cannabis também pode auxiliar indiretamente na adesão ao tratamento, pois contribui para o alívio de sintomas como dor, insônia ou náuseas, tornando a rotina com os medicamentos mais confortável.
É importante lembrar que a TARV é segura, eficaz e tem poucos efeitos colaterais atualmente. Mas todo e qualquer uso de medicamento, inclusive à base de cannabis, deve ser comunicado ao seu médico infectologista, pois podem ocorrer interações com os antirretrovirais, afetando a absorção ou o efeito dos remédios.
Como a Dra. vê o papel da Cannabis no cuidado integral da saúde mental desses pacientes, considerando os altos índices de ansiedade, depressão e insônia na população com HIV?
O diagnóstico de HIV, além do impacto físico, pode afetar profundamente a saúde mental. Sentimentos como medo, ansiedade, tristeza e insônia são muito comuns, especialmente nos primeiros meses. A boa notícia é que hoje existe um arsenal terapêutico amplo — e a cannabis medicinal pode ser parte importante desse cuidado.
- CBD para ansiedade e depressão: O canabidiol (CBD), um dos principais compostos da cannabis, tem efeito calmante e modulador do humor. Ele atua no sistema endocanabinoide e nos receptores de serotonina, ajudando a reduzir sintomas de ansiedade e depressão com segurança e sem efeitos psicoativos.
- THC e sono: O THC, quando usado com cautela e na dose correta, pode ajudar a regular o sono, promovendo noites mais tranquilas e restauradoras. Isso é especialmente útil em momentos de tensão emocional ou alterações no ciclo do sono.
- Bem-estar emocional e autonomia: O uso da Cannabis medicinal também pode representar um gesto de autocuidado e autonomia, melhorando a autoestima e fortalecendo o vínculo com o próprio corpo.
Contudo, é importante lembrar que o cuidado com a saúde mental deve ser sempre multidisciplinar. A cannabis pode ser um recurso complementar, mas não substitui a importância de fazer terapia, manter uma alimentação nutritiva e praticar atividade física regularmente. Esses são cuidados valiosos para todos nós — vivamos ou não com HIV.

















