Com uma pauta regulatória em inflexão e o avanço de frentes técnicas cada vez mais complexas, o congresso We Need to Talk About Cannabis (WNTC), realizado em 10 de junho, em São Paulo, reuniu o que hoje compõe o núcleo decisório da agenda da Cannabis medicinal no Brasil. O encontro, que chega à sua edição mais madura, se confirmou como espaço de construção — e não apenas de discussão — de caminhos para um setor em transformação estrutural.
Se a tônica do evento era a convergência entre regulação, ciência e mercado, a programação do WNTC 2025 soube dar conta dessa ambição. De painéis densos sobre farmacopéias internacionais à nova lógica regulatória para produtos veterinários, o congresso refletiu não apenas os dilemas do presente, mas também os contornos de um futuro que começa a se desenhar.
Uma regulação em transição
A revisão da RDC 327, norma que organiza hoje a comercialização de produtos à base de Cannabis no país, abriu os trabalhos. E não por acaso. A proposta de substituição da resolução, atualmente em fase de consolidação de contribuições públicas, é um dos marcos mais aguardados pelos atores do setor.
João Paulo Perfeito, da Anvisa, destacou, em entrevista exclusiva ao Portal Cannabis e Saúde, que o novo texto busca resolver o que a RDC 327 tratou como solução provisória: “A proposta estabelece uma transição real entre produtos de Cannabis e medicamentos, com possibilidade de renovação da autorização sanitária por mais cinco anos — desde que as empresas já tenham iniciado o processo de desenvolvimento e aprovado o seu dossiê de estudo clínico junto à ANVISA.”
Segundo ele, a norma também poderá ampliar vias de administração e flexibilizar o receituário para produtos com baixo teor de THC.
A mudança, no entanto, não se esgota na norma. Ela se desdobra em cadeia. Esse foi o eixo transversal do painel seguinte, que tratou da etapa não clínica e clínica dos medicamentos, intercambiabilidade e projeções de mercado.
O pano de fundo regulatório em transição deu o tom também ao painel de mercado, moderado por Leandro Luize (Panorama Farmacêutico), que apresentou uma leitura analítica dos dados de vendas sob a vigência da RDC 327 e as projeções para os próximos anos. A proposta era clara: refletir sobre o potencial do setor sem perder de vista os entraves operacionais que ainda marcam a sua consolidação.
“Estamos falando de um setor que precisa consolidar dados e narrativas. A comunicação técnica tem o papel de quebrar estigmas, mas também de sustentar a confiança no que se está desenvolvendo”, afirmou Luize. “O desafio não é só comunicar — é educar, integrar e posicionar.”
Pesquisa, insumos e cadeia produtiva
Os debates da tarde apontaram para uma dimensão igualmente estratégica: a da soberania tecnológica. No painel dedicado ao cultivo por indústrias para fins medicinais, Pedro Gabriel Lopes (Instituto Ficus) e Leonardo Navarro (Instituto Conexão e Regulação) trouxeram uma análise sobre os entraves — e oportunidades — da cadeia verticalizada. Com o julgamento do STF em 2024 reconhecendo a legalidade do cultivo para fins científicos e medicinais, o desafio agora é regulamentar sua operação de maneira funcional.
A questão da soberania produtiva também ganhou centralidade na programação. No painel sobre competitividade e produção nacional de IFAs de CBD — considerado um dos mais estratégicos do evento — o foco foi o papel do Brasil no fornecimento global de insumos com qualidade regulatória. Norberto Prestes, presidente executivo da Abiquifi, ressaltou que a viabilidade desse movimento exige mais do que ambição.
“O evento deixou claro que essa regulamentação não pode ser postergada. A produção nacional de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) depende de segurança jurídica para sair do campo do discurso e ocupar de fato o lugar estratégico que tem”, avaliou. Para ele, sem um marco regulatório funcional para o cultivo e a produção local, o país corre o risco de perder uma janela de oportunidade.
Essa discussão se conectou, de forma direta, ao painel de pesquisa e desenvolvimento. Ali, Cláudio Schefer (EMBRAPII) apresentou atualizações sobre desenvolvimento de formulações, enquanto Gabriela Cezar (Vettiva) e Kátia Ferraro (Equinecare) discutiram os avanços e limitações da P&D em saúde animal.
Cannabis veterinária: ciência em movimento, mercado em formação
A possibilidade, recém-estabelecida, de registro de medicamentos veterinários à base de Cannabis junto ao Ministério da Agricultura abriu uma nova frente de discussão — e também de expectativas.
“Existe hoje uma tendência promissora para uso de derivados de Cannabis em animais domésticos e de produção, mas ainda precisamos avançar na comprovação científica. Isso significa conduzir estudos multissetoriais, bem desenhados, com diferentes grupos de tratamento e posologias definidas”, alertou Greyce Lousana, presidente da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica (SBPPC).
Para ela, o cenário regulatório atual abre portas, mas impõe um dever ético à comunidade veterinária: “É um campo novo, e o nosso avanço precisa estar fundamentado na ciência. Tenho confiança de que veremos os primeiros registros oficiais nos próximos anos, mas é preciso responsabilidade até lá.”
O WNTC como espaço de mediação técnica e política
Ao final do dia, o que se confirmou foi o papel do WNTC como ponto de articulação entre o que está sendo pensado e o que precisa, de fato, ser implementado.
“É um congresso que não termina no último painel. Ele continua nas regulamentações que saem, nos estudos que se iniciam, nas conexões que se formalizam depois do evento”, avaliou Carol Sellani. “A curadoria deste ano foi pensada para isso: criar um mapa realista e estratégico para o setor.”
Se em anos anteriores o evento teve um caráter mais exploratório, em 2025 ele se afirmou como espaço de encaminhamento. Um evento que não apenas reflete o setor, mas também o orienta.