Na minha prática clínica, é comum atender pacientes exaustos. Não só pela doença em si, mas pela frustração de já terem tentado de tudo — e, ainda assim, não se sentirem melhores. Muitos chegam com sacolas de exames, diagnósticos variados, tratamentos fragmentados e um questionamento frequente: “Nenhum tratamento funciona, será que a Cannabis vai resolver meu problema?”.
Nesses casos, percebo que o erro não está apenas na prescrição, mas na ausência do alicerce essencial de uma vida saudável: bons hábitos de vida. Minha resposta geralmente é a seguinte: “Com certeza você não chegou nesse estado da noite para o dia, e provavelmente não foi uma única coisa que desencadeou todo esse sofrimento por tantos anos, dito isso faz sentido uma condição tão arrastada e complexa ser resolvida com uma única coisa?” O tratamento com a Cannabis medicinal definitivamente fará a diferença na sua vida, mas não sozinha.
Quando falamos de modulação do Sistema Endocanabinoide (SEC), é fundamental sair da visão simplista de que basta usar Cannabis medicinal. O SEC responde a estímulos que vão muito além da molécula. Sono, alimentação e exercício físico não são apenas orientações gerais para uma vida saudável — são moduladores diretos do equilíbrio e da homeostase do nosso corpo, integrando o tratamento de qualquer condição médica. Quando negligenciados, mesmo com o uso de fitocanabinoides, a resposta terapêutica é mais lenta e menos eficaz, podendo até perder eficácia com o tempo.
Nutrição: o que você come informa seu sistema regulador
A alimentação impacta diretamente o SEC, já que nosso próprio corpo produz substâncias semelhantes ao CBD e THC. Os principais canabinoides endógenos — anandamida e 2-AG — derivam de ácidos graxos obtidos pela dieta. Uma base alimentar rica em ultraprocessados, com desequilíbrio crônico entre ômega-6 (inflamatório) e ômega-3 (anti-inflamatório), gera uma sinalização endocanabinoide desorganizada, aumentando dor, compulsão alimentar, inflamação e desregulação emocional.
Watkins & Kim (2014) demonstraram que dietas desequilibradas prejudicam diretamente o SEC, exacerbando inflamações e comportamentos relacionados ao estresse e compulsão alimentar. Em contrapartida, dietas balanceadas e enriquecidas com ômega-3 restauram o equilíbrio do SEC, regulando positivamente o humor e auxiliando no controle do peso corporal.
Oriento meus pacientes a começarem pelo básico: mais fibras, mais água, mais frutas e verduras. Menos alimentos industrializados, menos açúcar oculto, menos frituras. Não recomendo dietas restritivas ou milagrosas — o bom senso sempre prevalece. Afinal, você é o que você come, e sua alimentação se transforma no combustível essencial para o funcionamento do seu organismo. Como esperar recuperação eficaz se você prejudica a capacidade natural do corpo com uma alimentação inadequada?
Por melhor que seja o tratamento com medicamentos a base de Cannabis, ele não atua isoladamente como na medicina tradicional. Nós modulamos o Sistema Endocanabinoide, no qual os fitocanabinoides são pilares importantes, mas abordagens como a nutrição também desempenham papéis cruciais.
Atividade física: remédio para o cérebro e combustível para o SEC
A atividade física regular não é negociável. Não é só estética ou bem-estar. Sempre afirmo aos meus pacientes que atividade física é um medicamento essencial para corpo e mente — benefícios como redução das taxas sanguíneas e melhora estética são apenas efeitos colaterais positivos desse tratamento. O exercício, especialmente aeróbico leve a moderado, aumenta os níveis circulantes de anandamida, explicando a sensação de “mente limpa” após uma caminhada ou pedalada.
Além disso, melhora a plasticidade cerebral, reduz inflamações e sensibiliza positivamente os receptores CB1 e CB2. Sallaberry & Possidente (2024) reforçam que exercícios físicos regulares promovem adaptações significativas no SEC, aprimorando a resposta ao estresse, reduzindo ansiedade e aumentando o bem-estar geral.
Independentemente da sua condição clínica (desde que não esteja em uma fase aguda), atividade física é essencial. Não há desculpa válida! Dor no joelho? Hidroginástica. Não gosta de água? Pilates. Não gosta de pilates? Funcional. Qualquer barreira que você levante pode ser superada por alguma modalidade adequada. Lembre-se: mudanças duradouras precisam partir de você, e a atividade física é mais um pilar indispensável na modulação do SEC.
Sono: a base invisível da modulação do organismo
Dormir mal desorganiza o corpo por completo — e o SEC sofre diretamente com isso. Os receptores endocanabinoides, especialmente CB1, regulam partes do ciclo sono-vigília. Privação de sono reduz a sinalização natural da anandamida, aumenta a vulnerabilidade ao estresse e desregula o eixo HPA. Pava et al. (2020) mostram que privação de sono afeta profundamente o SEC, diminuindo a produção e liberação de endocanabinoides essenciais para o ritmo circadiano e equilíbrio emocional. Esses efeitos aumentam diretamente ansiedade, dor crônica e comprometimento cognitivo.
Clinicamente, observo que melhorar o sono transforma tudo: humor, dor, compulsão, foco e energia, além de potencializar a resposta aos canabinoides exógenos. Cuidar do sono é uma das maneiras mais simples e eficazes de otimizar a farmacodinâmica interna.
Luz baixa à noite, evitar telas antes de dormir, criar rituais de transição e manter horários consistentes são pequenos ajustes que reorganizam seu eixo biológico.
O sono é tão importante quanto o próprio tratamento, pois todas as funções do organismo dependem dele. Veja como o ciclo vicioso gerado por um sono ruim agrava o sofrimento:
- Sofrimento físico e/ou emocional → maior estresse, irritabilidade, ansiedade e tristeza, intensificando o quadro inflamatório;
- Sono prejudicado (por maus hábitos ou pelo sofrimento) → redução da capacidade de recuperação adequada do corpo e mente;
- Dia seguinte com agravamento dos sintomas → mais dor, ansiedade e estresse, resultando num ciclo contínuo e crescente.
Conclusão: modulação não se faz só com fármaco
Falar em Sistema Endocanabinoide sem considerar estilo de vida reduz drasticamente a complexidade envolvida. O SEC é altamente sensível: ele responde ao que você come, como você dorme, ao seu nível de atividade física e ao seu estado emocional.
Como médico que utiliza fitocanabinoides diariamente, afirmo com segurança: o impacto do CBD ou THC será significativamente maior e mais duradouro quando o terreno estiver fértil. E esse terreno é construído com bons hábitos.
Na abordagem integrativa, tratamos além das moléculas — tratamos o contexto. É exatamente esse contexto — sono, nutrição e exercício — que diferencia o tratamento meramente sintomático da verdadeira modulação terapêutica. Dados científicos comprovam o que observo diariamente: hábitos saudáveis são uma terapia real, eficaz e indispensável para prevenir doenças, melhorar a qualidade de vida e modular efetivamente o Sistema Endocanabinoide.
Referências:
- Watkins, B. A., & Kim, J. (2014). The endocannabinoid system: directing eating behavior and metabolism. Frontiers in Psychology, 5, 1506.
- Sallaberry, C. A., & Possidente, B. (2024). Aerobic Exercise and Endocannabinoids: A Narrative Review of Stress Regulation and Brain Reward Systems. Cureus, 16(3), e55519.
- Pava, M. J., Makriyannis, A., & Lovinger, D. M. (2020). Cannabinoids, Endocannabinoids and Sleep. Frontiers in Molecular Neuroscience, 13, 125.