A iniciativa visa dar cumprimento à recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou recurso (RE nº 635.659) sobre a pauta, em junho do ano passado, o qual estabeleceu os limites para diferenciar o porte de maconha para uso pessoal do tráfico.
De acordo com informações veiculadas pelo Conselho, até o dia 30 de julho, e com a Portaria nº 167/2025 do órgão, os tribunais da Justiça Estadual e os Tribunais Regionais Federais se concentrarão em rever decisões, inicialmente, dos últimos oito anos. A decisão do STF em fixar critérios de diferenciação desponta em um contexto no qual o sistema penal brasileiro tem enfrentado um profundo questionamento quanto à sua eficácia, seletividade e aderência aos princípios constitucionais. Este mutirão é o primeiro realizado no âmbito do plano “Pena Justa”, que consiste em uma iniciativa do Poder Judiciário e do Executivo para enfretamento da situação crítica das prisões brasileiras, ações que apontam para uma transformação necessária e urgente, como a justiça restaurativa, que busca alternativas à lógica punitiva tradicional.
Essa abordagem visa a reparação de danos, o protagonismo das vítimas e a responsabilização consciente do autor, promovendo uma cultura de paz e diálogo, especialmente eficaz em crimes de menor potencial ofensivo e infrações relacionadas ao uso de substâncias psicoativas
Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu o chamado Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, caracterizado por violações sistemáticas e generalizadas de direitos fundamentais, como superlotação, falta de acesso a saúde e educação, e a criminalização de populações vulnerabilizadas. Dentro desse quadro de inconstitucionalidade estrutural, torna-se ainda mais evidente o impacto desproporcional da política de drogas sobre pessoas negras e periféricas, muitas vezes condenadas por pequenas quantidades de maconha destinadas ao consumo pessoal.
Iniciativas como os mutirões para revisão de condenações penais por porte de maconha ganham relevância política, social e jurídica
Essas ações visam reavaliar decisões condenatórias baseadas em critérios muitas vezes arbitrários ou discriminatórios, à luz de uma interpretação mais humanista da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que, embora preveja diferenciação entre usuário e traficante, não estabelece parâmetros objetivos, contribuindo para o encarceramento em massa.
Fitocanabinoides para a saúde
Ao mesmo tempo, cresce no país a demanda por produtos à base de Canabidiol (CBD) e outros canabinoides, para tratamento de diversas condições médicas — como epilepsia, autismo, Parkinson e dor crônica —, revelando uma contradição evidente: de um lado, o Estado encarcera usuários da planta; de outro, reconhece seu potencial terapêutico.
Essa dualidade foi impactada recentemente pela decisão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC n.º 16), o qual fixou a tese de que é legalmente possível o cultivo da Cannabis sativa por empresas, com teor limitado de THC, para fins exclusivamente medicinais e industriais.
A Corte reconheceu que a ausência de regulamentação específica por parte da ANVISA não pode ser utilizada como obstáculo absoluto ao exercício de direitos fundamentais, especialmente o direito à saúde, à pesquisa científica e ao desenvolvimento econômico sustentável. Nesse sentido, o STJ determinou que a ANVISA edite normas técnicas específicas para disciplinar o cultivo do cânhamo industrial e medicinal no país, superando a lacuna normativa e proporcionando maior segurança jurídica e sanitária à produção nacional.
A viabilidade jurídica do cultivo da Cannabis para fins medicinais e industriais por empresas
Evidencia-se, portanto, um importante avanço na construção de uma nova regulamentação e política pública mais coerente com os direitos fundamentais, ao reconhecer a viabilidade jurídica do cultivo da Cannabis para fins medicinais e industriais por empresas, e ao impor à ANVISA o dever de regulamentar o tema. Esse posicionamento não apenas atende à crescente demanda social por acesso a tratamentos eficazes e menos burocráticos, mas também simboliza uma guinada institucional em direção a um modelo de justiça mais restaurativa e humanizada.
Traçando um paralelo entre as recentes decisões e o mutirão do CNJ, observa-se um afastamento de um paradigma puramente repressivo da política de drogas e a abertura de um espaço para uma regulação baseada em evidências científicas. Nessa direção, o Judiciário contribui para mitigar os efeitos do encarceramento em massa por condutas de baixo potencial ofensivo e para resgatar a dignidade de sujeitos historicamente marginalizados. Assim, a interseção entre o direito à saúde, a regulação racional de substâncias e a justiça restaurativa sinaliza uma transformação estrutural na forma como o Estado brasileiro deve lidar com os conflitos sociais relacionados à cannabis — não mais com exclusividade punitiva, mas com um olhar voltado à reparação, inclusão e efetividade dos direitos humanos.
Unir essas frentes — justiça restaurativa, superação do estado de coisas inconstitucional, revisão de condenações por porte de cannabis, regulamentação da cannabis medicinal e decisões judiciais progressistas como a do STJ — é um passo fundamental rumo a um sistema de justiça mais humano, proporcional e coerente com os princípios constitucionais e com os direitos humanos.