O debate da tarde desta terça-feira (1º) na última audiência pública da Comissão da Cannabis Medicinal da Câmara dos Deputados ouviu representantes de entidades religiosas, médicos, farmacêuticos e setor regulado. Pela manhã, a reunião ouviu pacientes e ONGs.
O evento começou com dois representantes da Igreja Evangélica neopentecostal Sara Nossa Terra. Primeiro falou o deputado estadual paulista Luiz Fernando Teixeira (PT). O político disse que irá defender o PL no meio evangélico.
“Sou radicalmente contra o uso recreativo, porém se trata de regulamentar a produção do canabidiol no Brasil. É um projeto todo amarrado, não deixa dúvidas. Eu, evangélico e membro de uma igreja conservadora, venho trazer a nossa defesa. Liberação da maconha nesse projeto, em momento nenhum está sendo dito”.
Em seguida falou o deputado distrital Rodrigo Delmasso (REP), também representante da Sara Nossa Terra. Ele é autor de uma lei no DF que autoriza o fornecimento de medicamentos com Cannabis pelo governo a pessoas com epilepsia, bem como de um PL que autoriza o SUS a fornecer Cannabis às pessoas com outras doenças neurológicas. O político, no entanto, é contra o plantio no país.
“Sou favorável à distribuição desse medicamento, mas contra o plantio de maconha no Brasil porque acredito que não temos estrutura para fazer a devida segurança. E se estamos falando de canabidiol, porque não falar do CBD que provém do cânhamo. Ele é muito mais puro e mais forte do que o que vem da maconha”.
Por último, falou o Padre Ticão, representando a igreja Católica. Disse que a Cannabis é uma planta sagrada milenar, mas que sofreu preconceito nos últimos anos. Ele defendeu que a planta seja cultivada na lei pelas famílias que precisam.
“Nós fazemos doações de sementes para as famílias e temos advogados que buscam esse direito. O Brasil não pode ser uma colônia dos americanos, onde nós não podemos plantar e fazer o nosso óleo”.
Por último, disse que Jesus Cristo “operava seus milagres no sábado, que era o único dia que não podia”.
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Regulação
No segundo bloco, sobre regulação, o advogado Rodrigo Mesquita, membro da Comissão Especial de Assuntos Regulatórios da OAB, argumentou que a Anvisa já autorizou cerca de 20 mil pessoas a importarem esses produtos. Que, além disso, o judiciário brasileiro, mais de 100 vezes concedeu salvos condutos para cultivo doméstico de Cannabis e também a duas associações.
“Então não há dúvidas sobre a necessidade de regulação. O estado brasileiro está obrigado perante à comunidade internacional a regular”
O delegado Marcos Paulo Pimentel, da Coordenação-Geral de Repressão a Drogas, Armas e Facções Criminosas da Polícia Federal elogiou as regras de segurança ao plantio e defendeu o veto ao auto cultivo, pois evita desvios e má qualidade do óleo. Mas ponderou que a produção de alimentos, bebidas e roupas pode aumentar a publicidade e reduzir a percepção da sociedade sobre o risco da maconha à saúde.
Bloco dos Médicos
Ricardo Ferreira, médico ortopedista e precursor na indicação de Cannabis no Brasil, explicou que, tanto CBD como THC tem valor medicinal e, de forma didática, que “não existe o bom e o mau”.
“O CBD é mais seguro pela ausência da psicoatividade, mas muitos pacientes não respondem e precisam do THC. Eu falo sobre dor crônica. E 30% da população sofre de dores crônicas. Desse grupo, 10% não consegue resolver suas dores com a medicação disponível. Isso dá 6 milhões de pessoas. Essas pessoas talvez possam ser beneficiadas pela Cannabis.
Em seguida, falou o médico Leandro Ramires, presidente da Ama+Me (Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal) e autorizado pela Justiça a cultivar maconha para o filho autista, o Beni. Ele argumentou que o cultivo individual de Cannabis é um “direito pétreo constitucional e questionou “quem é o poder legislativo para proibir o tratamento dessas pessoas?”
Eliane Nunes, diretora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis, disse que a entidade apoia a lei mas fez ponderações:
“Pedimos que seja desburocratizado o acesso à Cannabis para a pesquisa científica em universidades e institutos de pesquisa. E que os médicos não sejam impedidos de prescreverem como está na lei, que hoje restringe o THC. Os médicos não podem ser algemados na sua prática”.
Em seguida, se manifestou a deputada Bia Kicis (PSL-DF). A parlamentar se posicionou contra o plantio, uma vez que à comercialização já é permitida pela Anvisa.
“Conversamos com o ministro da Saúde e o presidente da Anvisa e estamos buscando outra solução (ao #PL399). Que o SUS distribua gratuitamente a medicação para 4 mil crianças que sofrem de epilepsia refratária”, afirmou.
Kicis alegou ainda que 70 kg de maconha por mês seriam necessárias para atender essas supostas 4 mil crianças. A deputada, no entanto, não apresentou nenhuma fonte para esses dados.
Cultivo
No bloco sobre plantio de Cannabis, o pesquisador da Embrapa Roberto Vieira manifestou desconfiança de que exista nas farmácias vivas do SUS a garantia do controle de cultivo e defendeu que “uma parceria público privada seria mais interessante”.
Fabian Borghetti, biólogo e professor da UnB contou o caso do seu filho, que teve câncer e se tratou com um óleo artesanal.
“O extrato bruto vinha com terpenos, ácidos graxos, um extrato que trouxe muitos outros benefícios do que usar um fármaco isolado. Com isso, meu filho não precisou fazer uso de esteróides, anti alérgicos. Ele não precisou fazer nenhuma transfusão, ele se alimentava bem, dormia bem”.
Sobre o plantio, defendeu que ele seja aberto.
“É uma planta que se dá bem em ambientes ensolarados, é de fácil cultivo. Então que as casas de vegetação possam permitir entrada de luz solar, de ventilação natural para ter acesso ao meio ambiente. Isso reduz a despesa com lâmpadas e ventilação artificial e barateia o custo de produção. Também aproveita a vocação do nosso país.
O engenheiro agrônomo Sérgio Rocha desenvolveu o primeiro mapeamento para produção de Cannabis medicinal e industrial numa pesquisa de parceria entre a UFV e a startup ADWA Cannabis. Em sua fala, ele afirmou que a primeira conclusão do estudo é que não há necessidade de insumos importados se temos condições de cultivo a baixo custo. Ele também defendeu o cultivo de cânhamo em ambientes abertos, pois é uma variedade sem THC.
“Isso vai aumentar o custo final dos produtos. O controle deve ser feito na certificação das sementes utilizadas”, sustentou.
O agrônomo também defendeu que se estabeleça uma margem de segurança nas concentrações de cultivo de cânhamo industrial: “a justificativa é que elas podem causar variações de concentração que podem ultrapassar o limite”.
Farmácias vivas
Dr. Marcos Trajano, médico da família na Secretaria de Saúde do Distrito Federal, destacou que o PL 399 irá fortalecer o Sistema Único de Saúde.
“Os relatórios das últimas 9 conferências de saúde do SUS defendem a inclusão das plantas medicinais. Então são quase 40 anos de militância por essa oferta”.
O médico também destacou que “não podemos esquecer da questão de agroecologia, na recuperação de áreas degradadas. “Essas plantas não ajudarão só com a substância, mas por estarem reconstruindo nossos biomas que foram atacados nos últimos anos”.
Lembrou ainda que o teto de gastos impede a capacidade de investimento pelo SUS e que a compra de medicação importada piora essa situação: “essa lei pode sanar a aquisição importada de insumos farmacêuticos”.
O farmacologista Fabrício Pamplona, especializado em canabinoides, defendeu o PL e afirmou que raramente se vê “um processo legislativo tão empático, que entendeu as realidades das pessoas, ouviu todos os lados, mas atento ao que pode ser feito, de característica pragmática”.
Sobre a alegação da deputada Bia Kicis, de que somente 4 mil pessoas poderiam se beneficiar da Cannabis medicinal no Brasil, o cientista disse que a parlamentar não está “respeitando a inteligência das pessoas envolvidas”.
“É uma piada para não dizer que é má intencional. Só de epilepsia, são 600 mil pessoas impactadas. De dor crônica, só dos refratários são até 3 milhões de pessoas impactadas. Então são números dessa ordem que precisam ser levados em conta”.
Para Pamplona, o PL 399 “destrava uma grande amarra” brasileira que é a dependência de insumo estrangeiro. Por fim, sugeriu que o texto final olhe com cuidado para as nomenclaturas ‘produtos com Cannabis’ e ‘medicamentos com Cannabis’, pois isso tem implicações regulatórias importantes.
Setor regulado
O presidente da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), Norberto Prestes, trouxe um dado preocupante sobre o setor no país:
“Produzimos apenas 5% dos insumos que são consumidos no Brasil. O restante é importado. Esse PL pode dar a cadeia completa (da Cannabis medicinal) para o país e pode ser um exemplo para outras cadeias”.
Norberto Prestes trouxe também um levantamento produzido pela Abiquifi de que, se toda a cadeia produtiva da Cannabis medicinal for brasileira, a redução no custo da matéria prima poderá chegar de 50 a 70%.
Jose Bacellar, presidente da farmacêutica de Cannabis VerdeMed, sediada em Vancouver, destacou o setor regulado no Canadá, que já uma realidade há duas décadas. Argumentou que o Brasil vive uma crise econômica com 15 milhões de desempregados e que o projeto de lei vai gerar “investimentos, empregos, renda e impostos para financiar um governo que tanto precisa”.
Debates
O deputado Giovani Cherini (PL-RS) representou a Frente Parlamentar Agropecuária. O político defendeu a proposta e lamentou as “fake news preconceituosas, que esquecem da saúde das pessoas”.
“Nossa FPA, que é a maior frente do Congresso, tem muito apoio para aprovação desse projeto. E nesse momento de pandemia, as pessoas precisam de medicamentos e estão tendo que comprar clandestinamente. Então eu estou com vocês!”
O deputado Luiz Philippe De Orleans e Bragança (PLS-SP) se manifestou contrário ao plantio no Brasil. O parlamentar alegou que haverá excesso de produção nacional e que esse excesso irá abastecer usuários adultos de maconha.
“Para ter um preço acessível, teremos que ter uma produção muito grande. E para isso, a indústria vai escoar para outro segmento, que é o uso recreativo”.
Para o político, o país não teria como competir com os preços internacionais: “o Brasil já está atrasado, os melhores preços já estão em mercados estrangeiros saturados”
Em seguida falou João Carlos Bacelar (Pode-BA), que rebateu Luiz Philippe.
“Essas suposições são desumanas. Eu não consigo entender essa posição. Senhoras e senhores deputados, isso é um direito humano, o paciente procurar o mínimo de conforto”.
O baiano argumentou que se esse argumento fosse justo, então o país deveria proibir a produção de cana de açúcar, pois o produto também produz cachaça.
Por fim, o deputado Zacharias Calil (DEM-GO), que é médico, citou casos de pacientes com câncer e Alzheimer que tiveram melhora significativa com uso de Cannabis. Ele destacou que, se a lei não for aprovada, salvos condutos vão continuar sendo emitidos no país para cultivo individual. Calil rebateu também as críticas de que haverá desvios para o tráfico de drogas: “para isso existe a Polícia Federal”.
Ao término dos debates, o relator Luciano Ducci (PSB-PR) agradeceu os 54 oradores e respondeu os argumentos do deputado Luiz Philippe. Disse que o risco levantado pelo político é incabível, pois o PL prevê cotas de cultivo. Também questionou todos os demais parlamentares que se posicionaram contra a produção em solo nacional.
“Quer dizer então que nós não temos competências para produzir aqui?”
O texto final do PL 399/15 já foi encaminhado ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele deverá colocá-lo em votação no plenário nos próximos dias.